Pequeno químico

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Por Daniel Piza
Atualização:

Quem foi criança nos anos 60 e 70 se lembra do Pequeno Químico, uma caixa que continha um minilaboratório, um conjunto de recipientes de plástico e algumas soluções e pigmentos com que nos divertíamos vendo, por exemplo, uma cor surgir a conta-gotas. Me lembro também de um rádio galeno que fizemos, meus irmãos e eu, entre um joguinho de futebol e uma disputa de autorama no quintal de casa, mas vou parar por aqui antes que a memória sature. Devo dizer que esse tipo de iniciativa não adiantou muito, porque a maioria da nossa geração logo passou a odiar a química na escola e mesmo na faculdade; é a disciplina que mais reprova, segundo li recentemente. Mesmo assim, muita gente tem essa lembrança lúdica, e o livro Meu Tio Tungstênio de Oliver Sacks é justamente sobre como a química poderia ser fascinante se vista de outro modo - por um olhar que não cessa de sentir prazer com as surpresas que os fenômenos naturais proporcionam. No Brasil, como notou Richard Feynman nos anos 50, a ciência é ensinada como algo abstrato, feito de equações para decorar. *** Charles Darwin, que nasceu há 200 anos, no dia 12 de fevereiro, é o maior exemplo desse fascínio pelo engenho natural, pelo menos para mim, que comecei a ler seus livros na adolescência e nunca mais parei. Darwin escrevia muito bem, e o curioso é que também muitos de seus defensores, de Thomas Huxley a Stephen Jay Gould. Darwin e os Grandes Enigmas da Vida, de Gould, me explicou melhor que qualquer professor de colégio o maravilhamento que o improvável gênio inglês - aluno medíocre, temperamento suave - sentia pela natureza, na qual encontrou capciosas mudanças mínimas, capazes de vastas transformações futuras. (Quanto a Huxley, um dos mais poderosos argumentadores do ensaísmo inglês, continua sem livros disponíveis em edição brasileira. Sua palestra sobre giz para um grupo de mineiros é um marco na história da exposição de ideias.) Darwin foi uma mente rara em sua união da observação com a generalização, da descrição com a análise, e nada mais tolo do que menosprezar a Evolução por ser "teoria", como se não tivesse ampla comprovação prática. *** Olhando para o belíssimo céu noturno na Praia do Espelho, sul da Bahia, na semana do réveillon, fiquei pensando em como os navegadores que ali desembarcaram no território que seria o Brasil, há mais de 500 anos, não podiam senão imaginar que se tratava de uma abóbada finita, pincelada por uma constelação leitosa, ou de um manto quase palpável cravejado de estrelas que estão sempre ali, como velas acenando com seus brilhos. Era impossível pensar que o universo é tão amplo, com milhões de outros sóis, luas e galáxias; que aquelas luzes chegam com tal atraso que alguns daqueles corpos já nem existem; que a atmosfera é feita de ondas eletromagnéticas invisíveis a olho nu e não de um éter celestial; que há forças ocultas regendo aqueles movimentos, como a gravidade; que, enfim, a escala da percepção humana não dá conta de entender tudo aquilo, carente como é de instrumentos que captem micro e macrofenômenos. O poeta Keats se queixou de que explicar o arco-íris era tirar sua beleza, mas o mundo mental de Kepler, Newton ou Darwin é de uma poesia tremenda. *** É que é preciso considerar que a civilização viveu milhares de anos sem esse conhecimento e, "de repente", ao menos na perspectiva do tempo, começou a ver que uma porção de coisas tinha outras causas, que os sentidos nos enganam boa parte do tempo e precisam ser contestados para que visualizem novos e sutis mecanismos. Peguei no aeroporto outro dia um livro chamado As 100 Maiores Descobertas Científicas de Todos os Tempos, de Kendall Haven (Ediouro), e, por mais que se discutam seus critérios, faz sentido que apenas dez delas sejam anteriores a Newton. E que nada menos do que 60 sejam posteriores a Darwin, ou seja, feitas apenas nos últimos 150 anos, pois em 2009 comemoramos também o aniversário da publicação de A Origem das Espécies. Entre elas estão descobertas fundamentais como os átomos, os genes, o DNA, a relatividade e a quântica - e a criação de ferramentas que fazem parte do nosso cotidiano mais trivial, como remédios, computadores, fotocélulas, raios laser e satélites. *** Uma vez imaginei um exercício literário sobre tudo que Aristóteles não sabia sobre a natureza e o homem, e que certamente adoraria ter sabido. A filosofia e as artes sempre partilharam interesses comuns à ciência, não apenas conceitualmente, mas também em questões mais concretas. Outro livro possível seria sobre esses paralelos históricos, como, digamos, a relação entre a pintura de graduações luminosas de Rembrandt e a obsessão por lentes de vidro na Amsterdã do século 17. Ou entre os relatos de Darwin a bordo do Beagle, editados em 1839, e as histórias de Poe (Arthur Gordon Pym) ou Melville (Las Encantadas). Já se falou da relação entre o cubismo de Picasso e a física de Einstein, ambas cientes de uma realidade sem certezas totais. O que Kant, que especulou sobre "universos-ilha", acharia dos buracos negros? Como Descartes reagiria às descobertas do neurônio-espelho? E o que teria sido do impressionismo se não fossem as novas tintas a óleo de secagem rápida, talvez inventadas por um ex-pequeno químico com o conta-gotas à mão? Perguntar é preciso. NOVA VELHA ONDA Quando soube da morte de Antonio Moniz Vianna, para muitos o melhor crítico de cinema que o Brasil teve, fui reler alguns textos do livro Um Filme por Dia, organizado por Ruy Castro, e justamente na semana em que os 50 anos da nouvelle vague foram lembrados. Na terça passada, fui ao ótimo cinema HSBC Belas Artes só para rever Uma Mulher É uma Mulher, de Godard, um de seus filmes considerados mais leves, e verificar se ainda está vivo. Resenhando Viver a Vida, Moniz Vianna faz menção rápida ao filme anterior: "Comédia tão bem cuidada na parte sonora e do ângulo visual, que não conseguiu fazer rir em nenhuma cena." Bem, há algumas passagens engraçadinhas, e a cena carismática em que Anna Karina olha para a foto de seu companheiro com outra enquanto ouve no bar um disco de Aznavour, mas Moniz foi ao ponto. Sempre achei curioso como Godard e Truffaut, que acabaram virando o Quixote e o Sancho do movimento, são muito melhores em seus primeiros filmes, sobretudo em Acossado e Jules e Jim (um dos meus preferidos), e depois foram mergulhando em verborragia e superficialidade, respectivamente. O frescor desses filmes vem de sua estudada despretensão, do modo como contam suas histórias sem parecer se importar com elas; os personagens acontecem à medida que convivemos com eles, não são formalmente apresentados; improvisos, atos "desnecessários" e pequenas deliciosas irresponsabilidades - como Belmondo e Karina usando o abajur como se fosse portátil - não somem em meio aos cortes abruptos da imagem ou do som, às referências literárias, etc. O que os críticos da "exceção francesa" também esquecem é o quanto eles foram influenciados pelo cinema americano, das gags de Buster Keaton e Jerry Lewis aos dramas de Preston Sturges e John Ford, passando pelo que hoje chamam de entretenimento - e não à toa Belmondo cita Humphrey Bogart em Acossado e Karina cita Cyd Charisse em Uma Mulher É uma Mulher. Mas a nouvelle vague também deixou ampla herança, e filmes como Um Tango em Paris, de Bertolucci, ou Nashville, de Robert Altman, não existiriam sem esses precursores de uma linguagem mais informal e fragmentária. Bergman e Fellini, porém, estavam alguns degraus acima da dupla francesa. MINICONTO Então ela decidiu contar para a amiga que vai se casar de novo: - Sim, casar. Você vai conhecê-lo, ele é um homem muito atencioso, que melhorou minha autoestima. Todas as mulheres gostam dele, sabe? E ele é muito interessante, um ótimo profissional, que ganha muito bem mas sabe que a vida não é só dinheiro. Ele me fez sentir mais jovem, mais bonita! - Mas, afinal, quem é esse homem? - Meu cirurgião plástico. POR QUE NÃO ME UFANO O Brasil Velho não morre jamais; José Sarney está aí para não me deixar mentir. Vide a história do corregedor da Câmara mineira, o deputado Edmar Moreira, do PFL (agora DEM), que tem um castelo, "Monalisa", de R$ 20 milhões - mais brega do que qualquer outra coisa que já se viu, até o "Graceland" de Michael Jackson - e o declarou por valor sete vezes menor. O mesmo Moreira havia dito, assim como Sarney sempre diz que "a alegria é a contribuição do Brasil ao mundo", que não investigaria nenhum membro da Câmara por ter o "vício insanável da amizade". De fato. Insanável.

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