Pensando na morte para viver a vida

A Partida, do japonês Yojiro Takita, desenvolve um tema ingrato e indigesto e consegue tratá-lo com leveza e sensibilidade

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Por Crítica Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Vendo-se A Partida, de Yojiro Takita, tem-se ideia de como um tema dos mais indigestos pode ser tratado de forma palatável. E mesmo agradável. O filme ganhou o Oscar de melhor produção estrangeira, derrotando o favorito Valsa com Bashir. Todos esperavam que vencesse a animação que tem como assunto Israel e a guerra no Líbano, mas a preferência dos "velhinhos da Academia" foi por esse mix de comédia e drama japonês, que tem como personagem um frágil papa-defuntos. Veja o trailer de A Partida Sim, porque a história é essa. Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) é um violoncelista que fica sem emprego quando a orquestra na qual toca é dissolvida. Volta, em companhia da mulher, para a cidadezinha do interior onde sua mãe, morta há pouco tempo, lhe deixou uma casa. A vida lá é mais barata mas, mesmo assim, Daigo é obrigado a procurar emprego. E acha este, o de preparador de defuntos para o enterro, oficiante de uma cerimônia que, ficamos sabendo, faz parte da tradição milenar japonesa. Antigamente, eram as próprias famílias que preparavam seus mortos para a cerimônia fúnebre. Lavavam, vestiam, maquiavam os corpos. Agora ninguém tem mais tempo para isso. Nem estômago. E então entraram em ação os profissionais. Daigo junta-se a um deles, mestre na arte de dar ao morto aparência de vivo para despedir-se dos entes amados. O filme parece bastante despretensioso, logo no começo. Vemos o protagonista, no interior de um carro, perguntando-se se é aquilo mesmo que deseja como profissão para exercer até o fim dos seus dias. A paisagem é nublada; o chão, nevado. Vê-se pouco, e é dessa maneira mesmo que o protagonista provavelmente enxerga seu futuro. As sequências iniciais, na névoa, são, de certa forma, a chave para se entrar no filme. Parêntese: deveria ser sempre assim. Cenas iniciais que carregam o espectador para outro mundo - o do filme - e lhe fornecem algumas senhas para decifrá-lo. Nem sempre é assim. Mas em A Partida é. Se tudo começa no nevoeiro, que logo se dissipa, toda a ação posterior, embora bem iluminada e nítida, parecerá sempre algo obscura, como se não entendêssemos bem o caminho que Daigo está trilhando. Provavelmente nem ele entende. Vemos esse personagem tratando um corpo morto, prestes a ser enfiado num caixão. O rosto é de uma extrema beleza e sabemos tratar-se de um caso de suicídio. Por que uma jovem tão bonita terá se matado? O mestre pergunta se Daigo deseja se ocupar desse cadáver e a resposta é positiva. Ele mexe no corpo e o lava, pudicamente, sob o pano. Súbito se detém, surpreso. Na manipulação, descobre alguma coisa que não sabe o que é. Pergunta ao mestre e esse repassa a dúvida aos familiares. O que temos a seguir é uma explosão de sentimentos naquela família que, até então, assistia com tanto controle à preparação do corpo morto. É então que ficamos sabendo que essa estranha profissão manipula mortos mas lida mesmo é com a vida. Não a daquele que já partiu mas com a vida dos que ficaram. Reações de culpa, ressentimentos, ciúmes se avivam no momento em que as pessoas têm de se haver com o corpo morto, antes de desvencilhar-se dele. Coveiros e preparadores de corpos são depositários profissionais dessa soma de reações psicológicas produzidas pela morte de alguém próximo. É sobre isso que o filme vai tematizando, ao longo da sua duração. Há partidas e partidas (Aliás, o título mais correto seria mesmo no plural). Algumas mais assimiladas, outras mais dolorosas, aquelas que despertam sentimentos ambivalentes, outras que servem de pretexto a disputas familiares por heranças, materiais ou espirituais. E então entramos num segundo mecanismo, que torna o filme mais esperto e mais complexo - o próprio Daigo tem contas a ajustar consigo mesmo e com um dos familiares. E, depois que toda a história tiver passado diante dos olhos dos espectadores, estes poderão concluir que o personagem talvez não tivesse destino melhor do que o de lavar e vestir cadáveres, já que este trabalho é também uma forma de reparação. Mas o curioso é que A Partida toca nesses temas solenes e o faz com todo o respeito. Mas não evita também um registro cômico, a começar por aquele primeiro velório em que Daigo descobre no cadáver da moça linda algo que o surpreende. No entanto, Takita rege esse tom humorístico com muita delicadeza, como sabendo que toca em temas-tabu e não deseja a linguagem da profanação e sim a da descoberta e da sabedoria. Se certas passagens soam engraçadas é que existe uma espécie de graça nervosa na morte, como se os vivos rissem para disfarçar seu medo do inevitável. Um especialista no assunto, o pensador francês Philippe Ariès (autor do clássico A História da Morte no Ocidente) notou essa presença inesperada do riso em situações de morte, onde ele menos seria esperado. E a interpretou como uma espécie de economia psíquica, que colocamos em uso para exorcizar a sensação de finitude diante dos mortos. Esse complexo sentimento humano diante da "indesejada das gentes" está presente em muitos filmes mas raramente é abordada de maneira direta. Uma das exceções é o documentário brasileiro Artesãos da Morte, de Miriam Chnaiderman, que ouve os profissionais e também assume o tom de que "falando da morte estamos de fato falando da vida". O filme tem um lado duro, às vezes muito difícil de suportar, mas transforma-se em alívio em seu desfecho, quando o lado luminoso sobressai sobre o soturno. A Partida é outro desses raros filmes que abordam a questão da morte de maneira tão direta, e o faz na chave da ficção. Na verdade, a pretexto do tema indigesto, vários outros subtemas vão se abrindo e se relacionando com o eixo principal. Há a questão do pai, mas também a da permanência da tradição num Japão modernizado e ocidentalizado. O contraste entre a vida alienada da metrópole, onde ninguém tem tempo para nada, nem para si nem para os outros e e rotina das cidades menores, que pode ser mais sufocante sob alguns aspectos mas humana sob outros. Há os problemas de relacionamento pessoal, e também as contingências da continuidade da espécie. Morrem uns para que outros possam nascer, algo que é fácil de compreender racionalmente mas difícil de aceitar no plano emocional. Muitas ideias em circulação para um filme no fundo tão simples. Serviço A Partida (Okuribito, Japão/2008, 140 min) - Drama. Direção Yojiro Takita. 14 anos. Cotação: Bom

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