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Pela utopia, nos séculos 19 e 21

No Rio, Fidelio recupera ideais humanistas de Beethoven, enquanto exposição de Jocy de Oliveira cria em meio ao caos

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:

O que é uma ópera? A união de teatro, música, artes plásticas que a define pode abrigar diferentes possibilidades, como mostrou o fim de semana carioca, com apresentações de Fidelio, de Beethoven, e Solo, de Jocy de Oliveira, espetáculo acompanhado da exposição Imersão, ''retro-prospectiva'' da carreira da compositora brasileira. Fidelio é a única ópera de Beethoven. Conta a história da mulher do prisioneiro político Florestan, Leonore, que se traveste de homem e, como Fidelio, vai trabalhar na prisão numa tentativa de salvar o marido. Interessava ao compositor e seu espírito humanista a crença no que o homem tem de mais nobre - a preocupação com a moral, a lealdade às idéias, pelas quais se deve estar pronto para qualquer sacrifício. O resultado é desigual - a música tem momentos de rara beleza, mas os longos diálogos muitas vezes arrastam a cena e impedem o desenvolvimento dramático. Daí que a grande qualidade do espetáculo que abriu a temporada de óperas do Teatro Municipal do Rio é a sua fluência narrativa. O diretor Alberto Renault criou uma concepção abstrata, mas repleta de significados, com poucos, mas ricos elementos, trabalhando com a oposição entre o preto e o vermelho. É inteligente, de bom gosto, não briga com a obra original, pelo contrário, deixa transparecer com roupagem contemporânea seus principais aspectos. Os problemas estão na música. Apesar da regência precisa, Roberto Minczuk ainda tem muito trabalho pela frente com a Sinfônica do Teatro Municipal, que assumiu há alguns meses - e os problemas com verbas, somados ao fechamento do teatro no segundo semestre para reformas tornam esse futuro um tanto incerto. No que diz respeito às vozes, Janette Dornellas é uma Leonore/Fidelio apagada, com efeitos desagradáveis nas regiões mais graves da voz e problemas de emissão que a tornam inaudível em momentos fundamentais da partitura (no que a orquestra colabora um pouco). John Pierce, que foi Tristão na produção de 2003 do Municipal do Rio, sai-se um pouco melhor - o timbre escuro presta-se bem à cena de abertura do segundo ato, em que Florestan delira na prisão, entre visões de Deus e de sua amada Leonore. O jovem tenor paraense Attala Ayan (Jaquino) merece ter a trajetória acompanhada; Carol MacDavitt foi uma Marzelline encantadora; Sebastião Teixeira saiu-se bem como Pizarro; e o grande destaque, cênica e vocalmente, foi o baixo argentino Hernan Iturralde como Rocco. DE VOLTA PARA O FUTURO Jocy de Oliveira tira os sapatos e entra na instalação Teatro Probabilístico III, original dos anos 60. À medida que caminha por uma ''partitura/mapa'', cerca de 80 sons são acionados por sensores - e, com a entrada do público, uma massa sonora vai se combinando e descombinando. Aqui, ela explica, interessa menos o resultado final que o processo de criação - o público é também compositor, moldando a partitura com os passos. Cruzando o salão do espaço Oi Futuro, um piano paira no ar, suas formas tomadas por terra, limo, deterioradas pela ação da água; esse Steinway foi jogado ao mar no ano passado pela compositora, sofreu ações da maré e de uma série de outras variáveis até ser recuperado pela compositora e transformado em símbolo, ícone de ''uma música aristocrata que submerge subvertida pela cultura das massas e pela perda da memória''. Mais adiante, é projetado um vídeo em que uma soprano cavalga, alusão a Maria Malibran, cantora do século 19, figura trágica, morta ainda jovem após cair de um cavalo e, em seguida, subir ao palco para interpretar La Sonnambula, de Bellini. Um andar acima, a cantora Gabriela Geluda se prepara para mais uma récita da pocket-ópera Solo, investigação sobre o imaginário feminino a partir das mulheres/personagens Desdêmona, Ofélia, Medea - e a Diva. A figura feminina, a atenção ao processo tanto quanto ao resultado, o apego a um corpo de idéias como eixo da produção, a subversão de símbolos da criação tradicional, a exploração do acaso e a teorização do caos - todos os elementos de Imersão dialogam com o que tem sido a obra de Jocy de Oliveira e surgem em momento interessante, quando trabalhos como Fata Morgana, As Malibrans e Kseni se preparam para sair em DVD. Mas Jocy quer evitar o termo retrospectiva - diz que prefere olhar para trás como ponto de partida para chegar ao futuro. Que futuro é esse? ''O mundo de hoje experimenta a quebra de referência, de escolas, de utopias. Essa liberdade é uma maravilha. Mas é preciso ter em mente que não estamos mais no século 20. Vivemos o século 21 e, se não sabemos que cara ele tem, devemos nos sentir desafiados a esboçá-la.''

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