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Peça revela a densidade do silêncio

Um Dia, no Verão mostra como a passagem das horas e a angústia da espera promovem alterações na alma de uma mulher

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Por Ubiratan Brasil
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A solidão dos personagens parece seduzir Renata Sorrah, atriz que, em seus 40 anos de carreira, sempre buscou tramas nada convencionais para encenar no teatro. ''''Acho que esse sempre foi o fio condutor'''', comenta ela, que interpretou mulheres solitárias como em Shirley Valentine (1991), seu único monólogo, Grande e Pequeno (1985), sua estréia como produtora no papel da atormentada Lotte da história de Botho Strauss, ou ainda na montagem de duas peças escritas pelo cineasta alemão Rainer Fassbinder, Afinal, Uma Mulher de Negócios (1977) e As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1982). A opção se repete no drama da mulher que não consegue se libertar do desaparecimento do marido, em Um Dia, no Verão. Desta vez, porém, o texto enigmático de Jon Fosse, em que a conjugação dos verbos parece ser a única pista para distinguir passado e presente, ofereceu um desafio à diretora da peça, Monique Gardenberg: a quase ausência de ação dramática. ''''Como em uma pintura, em que a imagem é trabalhada através da sobreposição de camadas, a narrativa de Jon Fosse parece descrever infinitas vezes a mesma ''''imagem'''', atingindo, com esse recurso, camadas cada vez mais profundas'''', compara ela, que se valeu de sua sólida formação musical e cinematográfica para montar a delicada direção da peça. A chave do trabalho está em uma cena que se repete ao longo da história: o da mulher jovem e o da madura se posicionando diante da janela, contemplando longamente o mar, elevando a natureza como mais um personagem da trama. Longitudinal como uma tela de cinema, o cenário de Hélio Eichbauer volta-se para a natureza, levando a mulher a passar boa parte do espetáculo de costas para o público, o que acentua a sua condição de isolamento e solidão. Arquitetônico, o cenário reproduz a fachada interna de uma casa de praia, com portas giratórias e um longo corredor, além da ampla janela com vista para o mar. Uma extensa faixa de areia, delimitada ao fundo por um ciclorama onde são projetadas imagens do mar e do céu em movimento, cria um segundo plano de ação (a praia), conferindo profundidade e perspectiva ao espaço cenográfico. ''''Achei que seria importante reproduzir, de alguma forma, o grau de tensão que esta mulher experimentou naquele dia'''', comenta Monique. ''''E a casa, que é o símbolo do projeto de Otto e da mulher, se transforma na prisão dela'''', completa Silvia Buarque. O realismo da ação é acentuado pelos figurinos atemporais de Rita Murtinho e pela iluminação de Maneco Quinderé, que criou variações de luz sugeridas pela passagem do tempo. ''''A peça se passaria em dois tempos, com duas estações diferentes, outono e verão'''', comenta Monique. ''''Existe uma diferença sutil de luz, mais alaranjada no passado e mais azulada no presente. Essa nuance vai se desfazendo à medida que a história vai avançando, à medida que o presente vai se misturando ao passado.'''' Construída sobre diálogos rarefeitos, que marcam a repetição incessante de idéias, surgiu o grande desafio para o grupo de atores e a direção. Como o texto não oferece grandes explicações, Renata Sorrah conta que buscou no ritmo das falas a intenção do sentimento. Já Silvia Buarque preocupou-se mais com as rubricas que com o texto, atenta à sensação de angústia, de sufocamento. ''''A possibilidade de trabalhar um texto em dois tempos foi muito atraente. Tinha a ver com meu trabalho no cinema em Benjamim, em que Paulo José revive o passado a cada manobra do seu pensamento'''', comenta Monique. ''''O mesmo se dá com Renata, ela evoca o passado, ela o traz e o tira de cena, ela é a diretora, a editora que determina o que deve tomar vida e o que deve permanecer como lembrança. A partir desse entendimento, era necessário que ela se misturasse ao passado, entrasse e saísse dele sem grandes transtornos, com delicadeza, como Bergman o fez tão brilhantemente em Morangos Silvestres.'''' A diretora preocupou-se também com a trilha sonora, montada a partir da busca do sentimento certo para cada cena. ''''Tudo começou quando meu irmão, André Gardenberg, me apresentou à música de Sia. Senti na hora que aquela deveria abrir o espetáculo e o convidei para colaborar na trilha. Ali estava o tom da peça.'''' Assim, o passado é embalado por um rock doído, mas sem fidelidade à época, com versão recente de Nancy Sinatra para Let me Kiss You, de Morrissey, ou com músicas de The Rapture, Sigur Ross, Bloc Party, Renato Russo, além da melódica e triste Hope Theres Someone, de Antony and the Johnsons. Já o presente é marcado especialmente por música eletrônica. Serviço Um Dia, no Verão. 80 min. 14 anos. Teatro Sesc Anchieta (320 lug.). R. Dr. Vila Nova, 245, tel. 3234-2000. 6.ª e sáb., 21 h; dom., 18 h. R$ 20

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