Parte 4 - E Eis Que a Nave Foi Iluminada...

O ator Pascoal da Conceição, a convite do Estado, personifica Euclides da Cunha e reporta para os leitores do Caderno 2 a montagem histórica de Os Sertões em Canudos.

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Quarta-feira à noite. Ingressos esgotados. Você vai chegando e o burburinho do povo já serve de alerta para todos os que chegam à porta do Estádio Municipal de Canudos, que fica nos limites da cidade: é um quadrado enorme, cercado por um muro alto e branco. Dentro, há duas arquibancadas de escadas de concreto nas laterais. Você entra pelo portão principal e vê ao fundo a construção gigante de canos de ferro, que parece uma nave iluminada, construída pela produção, com arquibancadas e pista reproduzindo o Teatro Oficina, onde o espetáculo vai acontecer. Mas ainda não dá pra entrar: há umas cercas de metal, defensas, que estão a uns dez metros da entrada, que tem uma cortina transparente de voal, onde está projetado: A TERRA. Dava pra ver, dentro da nave toda iluminada, a equipe do teatro cantando em roda, se aquecendo na concentração. O público foi organizadamente fazendo uma longa fila parecendo um rabo de pipa. Alguns já se animam dançando, mas a maioria está tímida e curiosa. Então, a pelezinha de voal se abriu, removem as cercas e os atores caminham na direção da fila, todos de branco, de braços abertos, entrando e saindo, rodando com as pessoas, fazendo uma desordem que virava os olhares para todos os lados, cantando: "Atuar/Atuar/Atuar pra poder voar!/Meu cavalo tá pesado/Meu cavalo quer voar!" Vão se misturando a todos, se espalhando, e o grande espaço do campo de futebol é ocupado pelos atores e o público de mais de 800 pessoas. Teatro de estádio, dentro do estádio. Sobem todos num lado da arquibancada e com as costas no muro e ficam 70 atores encostados no paredão, frente a frente com o público. Fazem um minuto de silêncio.Depois, levantam o pé direito e caminham em direção à caixa iluminada do teatro. A platéia, junto com os atores, se dirige a seus lugares. Uma imagem pode e vai falar, mais que mil palavras, como foi o espetáculo. Assim seja. Quinta-feira. Dia seguinte da estréia, o espetáculo é o assunto da cidade, por onde você passa tem gente falando da peça: "É tudo pelado e você só paga um real pra olhá!" A nudez é um susto de satisfação. Todo pelado ou pelada arrepiava a platéia, que reagia com um coro de comentários. É que o corpo, eu penso assim, sempre obsceno, fora de cena, proibido, escondido por séculos de opressão, mentira, mistificação, o corpo é uma terra ignota, e, ao vivo, nu, em quantidade, põe pelada muita coisa que a gente não sabe ou não vê e que anda por debaixo dos panos, como o fato de que não tem um corpo igual ao outro em tamanho, forma e beleza, todo corpo é diferente como impressão digital. Outra coisa são os nomes. Em São Paulo, Cocorobó, Cume, Maçacará, Vaza Barris, soavam distantes, estranhos. Aqui, isso acontece com nomes como Minhocão, Avenida Paulista, rua Abolição, Bela Vista. Quase noitinha. Daqui a pouco, estréia O HOMEM, parte I. No caminho do teatro, duas senhoras já idosas e um menino gritaram pra mim, do outro lado da rua, "moço, tem ingresso pra vender pra hoje?" Tudo porque ontem o Zé Celso me chamou pra cena e disse pra todos "que eu estava ali enviado pelo jornal O Estado de S.Paulo, o mesmo que mandou pra cá Euclides da Cunha como correspondente de guerra há cento e dez anos atrás". Eu disse pra platéia que agora estava lá como correspondente de cultura e paz pra contar pro mundo aquela maravilha de acontecimento. O povo aplaudiu. É bem parecido o trabalho do jornalista com o do ator. No teatro, você jejua e medita na peça o tempo inteiro. Fica tomado pelo texto: come, bebe, dorme, faz amor pensando nele. É o tempo todo tendo idéias, atuando, discutindo, procurando coisas que tenham a ver com o trabalho. Fazendo o papel de Jornalista, sinto que são raros os momentos de folga. Tenho que escrever um texto por dia, não é hábito meu, então, pra não perder nenhum assunto, me pego em vigília permanente, orelhas e os olhos são parabólicas, captando notícia nos sinais que me rodeiam, escrevendo o tempo todo parágrafos no pensamento que, pra meu desespero, na seqüência se perdem como o sal na água. Medo de ser pego pela seca, de ter aquela folha branca, aquele sol te olhando, te secando. E você precisando, querendo fazer, tendo coisa pra falar e não sai nada, ou o que sai é chocho e seco. Ontem (quinta) nasceu o sertanejo: é o homem. Foi o dia mais bonito até agora. Lotado, com gente espremida na arquibancada, acompanhando e participando de tudo. Quando terminou a primeira parte e se anunciou que a segunda começaria com um forró, foi um jorro de alegria. Além do forró, dois cantadores daqui da região improvisaram um desafio, dividindo a platéia em duas partes animadas, torcendo pelo seu time, até que chega a ?Seca? e a alegria silencia. Ela desfila demorada pela pista, olhando a todos com desdém de musa. Mas uma cena mudou o eixo dos comentários. De repente, uma centena de sertanejinhos, participantes do PETI, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, todos de branco, toma o comprimento inteiro da pista. E numa emoção sem tamanho, a gente começa a ouvir muitas vozes infantis juntas, agudinhas, carregadas no sotaque nordestino, falando em coro, com pausas e arranques, o texto mais conhecido de Euclides da Cunha, de cócoras, de pé, girando rápido, bem ritmado, um ritmo pra frente, bem concentrados. Era a verdade na boca das crianças daqui do sertão: "O sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral..." Enquanto falavam, faziam movimentos coreografados vindos do texto: "E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo - cai é o termo - de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável..." Saíram aplaudidos. O dia terminou com a fala do Conselheiro, documento vivo de atavismo, grande homem pelo avesso, representante natural do meio em que nasceu. Mas ainda não dá pra ir dormir. Tem festa no "Jorrinho", um bar que fica na beira do açude de Cocorobó. Que ninguém é de ferro. PASCOAL DA CONCEIÇÃO P.S.: Enquanto ouço a produtora falando ao telefone com Salvador, pedindo um afinador de piano para o próximo espetáculo, Dona Rita Cardoso de Macedo, a Rita de Tiago, em nome do pessoal da Fazenda Pedra Solitária, comunidade da Toca Velha, me pede pra escrever no jornal que dêem atenção aos moradores de lá, que não têm luz. E a água tem que ser levada no lombo de animal.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.