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Para tornar os clássicos mais vivos

Apresentação de obras de Berlioz por grupo francês deveria iniciar debate sobre a busca necessária de novos públicos

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Hector Berlioz prefigurou, em seu tempo, o calvário dos compositores contemporâneos neste início de século 21. Gostavam mais do que escrevia como crítico do que de suas obras musicais. Mendelssohn foi um destes amigos que ficou horrorizado com sua Sinfonia Fantástica. Música nova, note-se, sempre foi recebida com um choque pelo público. Pois o notável Philippe Herreweghe e sua maravilhosa Orchestre des Champs-Elysées realizaram o milagre de restituir diante de nossos olhos e ouvidos o impacto que esta sinfonia provocou em sua estreia, em 1831. Mais: na semana passada, pela primeira vez no Brasil assistimos a esta obra nos moldes determinados pelo compositor. Ou seja, com Lélio, a sequência do que ele chamou de Episódio da Vida de um Artista. Este, seguramente, é o maior mérito deste que já é sério candidato a melhor concerto desta temporada. Imaginem que houve quem saísse após a execução da Sinfonia Fantástica, por causa do que chamaram de "penduricalhos" inúteis acrescentados à música. Os três telões, as cinco atrizes e o ator em cena apenas fizeram o que o texto de Berlioz recomenda. Quando ele diz que o herói dorme e delira por causa do consumo excessivo de ópio, o ator Marcial Di Fonzo Bo aplica-se uma dose de heroína; nem mesmo o topless coletivo do final pode ser chamado de excessivo, com as loiríssimas musas à nouvelle vague, bem anos 60, travestidas de sedutoras bruxas, embalando sensualmente o herói. Afinal, esta é provavelmente a música mais sexualmente motivada da história da música. Berlioz apaixonou-se perdidamente pela medíocre atriz irlandesa Harriet Smithson. Insistiu, cortejou-a, tentou de tudo. Ela resistia bravamente ao assédio. O binômio Sinfonia Fantástica-Lélio é uma declaração de amor pública e notória. E derrubou a resistência de Harriet. Eles se casaram pouco depois. Anos depois, ele trocou-a por outra, mas sustentou-a até o fim da vida. Berlioz é explosivo, polêmico. Sua música é excessiva por natureza. Ao meu lado, o maestro Olivier Toni encantava-se com as sonoridades e os instrumentos, mas no final acentuava que, por incrível que pareça, Berlioz, aos 27 anos, e apenas seis depois da Nona Sinfonia, ampliou muito o espaço sinfônico de Beethoven. Esta ampliação levou ainda mais longe o rompimento que Beethoven instaurou na forma sinfônica. Mais do que introduzir solistas e coro no último movimento, Berlioz arrebenta de vez o dique dos gêneros ao amalgamar formas absolutamente contrastantes na incrivelmente moderna Lelio. E prefigurou Liszt, Wagner e o poema sinfônico. Vamos por partes. Primeiro as canções. O tenor Robert Getchell interpreta, acompanhado apenas pelo piano, O Pescador, do lado direito do palco; na Canção dos Malfeitores é o barítono Pierre-Yves Pruvot que canta acompanhado pela orquestra; e mais tarde, o tenor retorna e, ao lado da harpa e das cordas, para o levíssimo Canto de Felicidade. No final, o ator dá a palavra à orquestra, que interpreta a bela Fantasia sobre A Tempestade, de Shakespeare. Os instrumentos autênticos da Orchestre des Champs Elysées provocam choque nos ouvidos. São maravilhosos os tímpanos de pele animal, aveludados até nos fortíssimos, na marcha inicial do quarto movimento; ou o diálogo entre o corne inglês e o oboé na cena campestre (terceiro movimento); as madeiras e metais de época demonstraram que se pode conservar o vibrato e o fraseado, não é necessário ser tão cortante. Isso sem falar na regência econômica e precisa de Herreweghe; e na excelente participação do coral da Osesp, em novo trabalho competentíssimo de Naomi Munakata. Este verdadeiro espetáculo multimídia onde a música ocupa um lugar central deveria ser tema de reflexão entre empresários, produtores, instituições, músicos, enfim, de todo o meio musical brasileiro: se queremos criar novas plateias, precisamos pensar com urgência em novas formas de apresentação. As cerca de 3 mil pessoas que estiveram na Sala São Paulo segunda e terça-feira e outras dezenas de milhares que acompanharam pela TV Cultura a transmissão do primeiro concerto certamente não ficaram indiferentes a esta proposta inteligente e de altíssima qualidade musical visando trazer a música clássica para o nosso tempo. Recriar o impacto original de um compositor do século 19 para plateias do século 21 é um feito notável. Sobretudo quando o tempo infelizmente aplainou o poder de sedução de sua música por motivos externos. Ou seja, porque nos prendemos demais a formas engessadas de ouvi-la, a rituais de concerto no mínimo discutíveis por sua rigidez.

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