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''Pai rico, filho nobre, neto pobre''

Ao lidar com esta síntese do Brasil, autor parece buscar novos territórios ficcionais em seu novo livro

Por Augusto Massi
Atualização:

Após a publicação de quatro livros podemos traçar um contorno mais nítido do universo ficcional de Chico Buarque. Em primeiro lugar, estamos diante de um escritor de mão cheia e que, desde Estorvo, vem alterando o campo de forças da nossa tradição literária. Em segundo, sua obra está marcadamente vinculada à forma do romance. O comentário parece óbvio, mas é bom lembrar que dois de nossos principais escritores, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, nem sempre atingiram no romance a fatura invejável dos contos. Em terceiro, no confronto com a visão de mundo de outros excelentes narradores, como Milton Hatoum e Marçal Aquino, seus livros suscitam questões mais amplas, complexas e agudas. Dentro dessa perspectiva, é preciso sublinhar que os três romances, Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), formam um ciclo narrativo notável. Procedimentos narrativos semelhantes e recorrentes configuram uma maneira de traduzir o mundo, de trazer à tona a descrição obsessiva e minuciosa da realidade que ama ocultar-se nas borras do real. Por isso, talvez, seja tão visível o progressivo mal-estar dos protagonistas que, conduzidos por ciclos cada vez mais infernais, acabam sendo dragados pelo torvelinho de racionalidade e alienação. Hoje, vistos com distanciamento, é fácil identificar tais procedimentos: a circularidade das tramas pede protagonistas andarilhos que, de tanto perambular em círculos, acabam girando em falso, migrando do centro para as margens, dissolvendo toda identidade na vala do anonimato. Budapeste, o mais bem realizado dos três, é o melhor romance brasileiro dos últimos 30 anos. Só Raduan Nassar alcançou o mesmo nível de realização formal. Leite Derramado, ao que tudo indica, representa a abertura de um novo ciclo. Alguns índices sugerem uma mudança, a começar pela expressão coloquial empregada no título que, de saída, revela uma forte presença do tempo. Os títulos anteriores, além de enigmáticos e cifrados pelo redemoinho das ações, remetiam o leitor para uma dimensão mais espacial. Mas a grande mudança está ancorada neste personagem centenário que descende de uma longínqua linhagem de Eulálios d?Assumpção que atravessam vários séculos da história do País. A saga familiar remonta ao Império, quando o bisavô foi feito barão por d. Pedro I; o avô foi um figurão do período, grão-maçom e abolicionista radical; e o pai, um dos políticos mais influentes da Primeira República, foi íntimo de presidentes e ganhou de Campos Sales a concessão do porto de Manaus. O ponto de inflexão dessa trajetória é o narrador de Leite Derramado, Eulálio Montenegro d?Assumpção, nascido em 16 de junho de 1907, no Rio. O cultivo dessa genealogia é sinônimo de poder político evocado a cada página por intermédio de retratos a óleo, fotos emblemáticas de família, nomes de ruas. Leite Derramado é a narrativa da derrocada de uma família resumida numa sentença: "Pai rico, filho nobre, neto pobre." A curva da decadência foi implacável com esse narrador que, ao completar 100 anos, em 2007, fornece passo a passo o seu roteiro de perdas que, simbolicamente, começa nas exéquias do pai assassinado, quando apaixona-se por uma menina de 16 anos, Matilde Vidal d?Assumpção (1912-1929), com quem casa e tem uma filha, Maria Eulália Vidal d?Assumpção. Esta, depois, será responsável por sua internação à força. É justamente do leito de um hospital que Eulálio dita suas memórias para uma enfermeira pela qual está apaixonado. Ao longo de 23 capítulos, brevíssimos em sua maioria, Chico Buarque procura mimetizar a interrupção constante da rotina hospitalar - administração dos remédios, tomografias, turno das enfermeiras - somados aos efeitos da morfina e aos frequentes lapsos de memória. Em contraponto à visão da classe dominante, há uma genealogia da escravidão que contempla os que serviram a esta mesma elite: "Assunção, na forma mais popular, foi o sobrenome que aquele escravo Balbino adotou, como a pedir licença para entrar na família sem sapatos. Curioso é que seu filho, também Balbino, foi cavalariço do meu pai. E o filho deste, Balbino Neto, um preto meio roliço, foi meu amigo de infância." É a contrapelo desta história construída em chave paralelística que se infiltram digressões, difamações, mentiras caridosas, repetições e versões soterradas por preconceitos que avançam e recuam em parafuso, afrouxando ou esticando fios soltos da narrativa: "A memória é deveras pandemônio." Do ponto de vista formal, o livro revisita em chave irônica as origens do próprio gênero. Primeiro flerta com o romance histórico e salpica o texto de referências culturais como um brinde que faz com o arquiteto Le Corbusier e a cantora Josephine Baker, a geladeira Frigidaire, a vitrola RCA Victor. Depois dialoga com as tradicionais "memórias de um pobre homem" ou as "viagens ao redor do meu quarto". Enfim, Leite Derramado sabe tirar proveito da constante troca de peles ficcionais, construindo uma história camaleônica, que sobrevive a diferentes ramificações, bifurcações e espelhamentos. A leitura atenta da primeira página pode ser reveladora do emprego abusivo dos possessivos: minha feliz infância, o nome da minha família, minha antiga mulher. Eulálio arrola um belo inventário, dita um tratado sobre a propriedade e o casamento segundo um herdeiro bem colocado: "Você vai usar o vestido e o véu de minha mãe", "Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família" e, por fim, "Você vai dar ordens aos criados". É essa proposta de casamento feita à jovem enfermeira que abre espaço para um dos pontos centrais do romance: o amor e o ciúme que Eulálio sente por Matilde. Nos capítulos 20 e 21, o romance desdobra-se num quadro vasto e ambicioso, ensaia uma tentativa de compreender a história do País introjetada, comprimida e camuflada na vida de um casal. Um verdadeiro par de descasados, crivado pelas diferenças disparatadas de idade, classe e raça ("Ah, sim, Matilde, uma escurinha que criamos como se fosse da família). E aqui me veem a mente o quanto a prosa caprichosa do livro está embebida na violência em surdina dos últimos romances de Machado de Assis. De certo ângulo, Chico dialoga com a ficção delirante de Quincas Borba, bebe no ciúme destilado de Dom Casmurro (Bentinho/Lalinho). Sem nostalgia, mais distanciadas e mais críticas, as páginas finais das memórias de Eulálio se aproximam da ficção desencantada e sem saída de Estorvo e Benjamim. Outras pontes poderiam ser criadas. Por exemplo, é possível descobrir certas ironias com relação à recente revisão histórica em torno da chegada da família real no Rio. Chico expõe uma série de mecanismos de legitimação do poder que foram tratados sem senso crítico pelos historiadores. Ele deixa à mostra as feridas regressivas de certa elite carioca que insiste em cortejar a Corte: "A foto é das prediletas da mamãe, traz meu pai ao lado da rainha Elizabeth, um degrau abaixo do rei." Um dos fatores que diferencia fortemente a prosa de Chico Buarque dos escritores atuais é que, assim como Machado de Assis, seu olhar se esforça para descrever com precisão os comportamentos da classe dominante. Nesse ponto, ele diferencia-se até da sua condição de compositor que sempre bebeu na longa tradição da malandragem da MPB, presente em Leite Derramado através do samba Jura cantado por Sinhô e Mário Reis. Para ficar no universo de Leite Derramado, nos romances de Chico Buarque a realidade é combatida por uma espécie de quimioterapia da imaginação. Quando o tumor do real cresce de forma acelerada, ele sabe combatê-lo com doses bem administradas de delírio. Por vezes, a sua prosa pode sofrer com alguns efeitos colaterais. Mas, na maioria dos casos, o tumor regride e o leitor se beneficia da imaginação. Linhas gerais: penso que este romance não consegue atingir o grau de realização formal de Budapeste, que nos deixa a sensação incontornável de obra-prima. Leite Derramado, em várias passagens, parece que fica aquém. Se estiver correta a minha hipótese de que está apontando para novo ciclo narrativo, penso que Chico conseguiu levar este romance a regiões inexploradas por seus contemporâneos, territórios que estão na origem do próprio gênero, aberto à porosidade crítica das ideias. Ao revirar pelo avesso ideologias entranhadas fundamente em nossos hábitos cotidianos, talvez ele avance rumo às raízes do Brasil. Augusto Massi é professor de literatura brasileira na USP

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