Outras marcas da violência

Estréia hoje Senhores do Crime, novo filme de David Cronenberg, com Viggo Mortensen

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

É um estranho Oscar este que se disputa no domingo, em Hollywood. Existe um grande filme clássico entre os cinco finalistas - Desejo e Reparação -, mas justamente seu diretor, Joe Wright, foi esquecido entre os indicados da categoria. Existe um filme de mediocridade aflitiva - Conduta de Risco -, travestido de atualidade política. E existem os grandes filmes que a academia ignorou. Um deles já se encontra em cartaz - Sweeney Tood, de Tim Burton. O outro estréia hoje - Senhores do Crime. Ambos tratam de aspectos sombrios da natureza humana, o mal. Ambos foram indicados na categoria de melhor ator. Pode até ser que, no frigir dos ovos, o Oscar fique entre Daniel Day-Lewis, por Sangue Negro, e George Clooney, por Conduta de Risco. Mas se o prêmio for (fosse) honesto, a disputa deste domingo deveria se travar única e exclusivamente entre Johnny Depp, o Sweeney Todd, e Viggo Mortensen, de Senhores do Crime. O retorno do rei faz-se em grande estilo. O autor David Cronenberg não vacila em atribuir quase uma co-autoria a Viggo, que faz o misterioso motorista de uma poderosa família da máfia russa de Londres. Um ator, diz Cronenberg, é antes de mais nada um corpo. O físico é seu instrumento de trabalho. Quando um cineasta filma um ator, o material sensibilizado pela película - ou mesmo que fosse a tecnologia digital - não tem nada de abstrato. É uma matéria viva, com nervos, músculos e contornos. Cronenberg tinha outros projetos depois de Marcas da Violência, seu filme precedente com Viggo Mortensen, ator cujo princípio de carreira remonta a A Testemunha, de Peter Weir, em 1985, mas cuja popularidade repousa basicamente sobre o personagem do rei, que interpretou na trilogia O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson. Um a um os projetos de Cronenberg foram tombando. Foi quando seu agente, em Hollywood, lhe enviou o roteiro de Steve Knight sobre o submundo russo do crime em Londres. Cronenberg gostou da idéia, mas não do roteiro, que fez reescrever quase integralmente. Quando ele propôs o papel de protagonista a Viggo, o ator aceitou, mas pediu tempo para investigar o personagem. Por iniciativa própria, Viggo foi à Rússia pesquisar famílias criminosas. Na internet, ele encontrou uma enciclopédia que relatava a importância das tatuagens no mundo russo do crime. As tatuagens, que viraram a metáfora mais importante de Senhores do Crime, não existiam no roteiro original. Elas podiam ser vistas nas mãos do personagem, mas faziam parte do seu mistério. Uma amiga parisiense de Viggo, Alix Lambert, foi a prisões de alta segurança na Rússia, nas quais conversou com prisioneiros que falam dessas tatuagens e as exibem. O material foi enviado a Steve Knight. Virou um documentário de Alix que Cronenberg está incluindo entre os extras do DVD de Senhores do Crime. Nos seus filmes mais antigos, mesmo que eventualmente eles tratassem de filiação e família - The Brood, A Hora da Zona Morta, Gêmeos - Mórbida Semelhança -, Cronenberg nunca foi um autor dos conflitos familiares. Interessava-o muito mais as disfunções do corpo, as mutações que os homens se auto-impunham e terminavam sempre por transformá-los em aberrações aos olhos de seus semelhanças. Os filmes de Cronenberg com Viggo Mortensen o aproximam mais do que se pode definir como ''''uma normalidade duvidosa''''. Não é que os filmes sejam mais realistas, pois Gêmeos e M. Butterfly se apóiam em descrições minuciosas da realidade (e o segundo se baseia em personagens que existiram). Mas Marcas da Violência e Senhores do Crime adquirem uma dimensão especial. O primeiro trata deste homem que, por uma reação do próprio corpo, na hora do perigo, descobre seu passado violento. O segundo mostra outro homem que carrega, nas tatuagens, as marcas da violência. Na trama de Os Senhores do Crime, Naomi Watts, intrigada com a morte desta garota que acaba de dar à luz, resolve investigar o caso. Ela possui o caderno de anotações da morta. Suas pesquisas a levam a este restaurante que é fachada para atividades criminosas. O dono é um restaurateur russo que tem um filho, ligado à vítima. E existe o motorista. Há toda uma disputa interna pelo poder em contraposição à base familiar. A família tem laços consanguíneos ou é uma comunidade à qual os personagens acreditam pertencer. O bebê lá pelas tantas vira uma ameaça e precisa ser eliminado. Naomi vai tentar impedi-lo, pois a esta altura já se sente meio mãe da criança. Toda a arquitetura dramática converge para a cena da sauna, quando Viggo é atacado por dois assassinos profissionais. A luta é espetacularmente filmada e a nudez do ator realça a fragilização do personagem. Um cinema do corpo, como Cronenberg gosta e um ator com a entrega de Viggo Mortensen lhe permite fazer.

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