Ouro negro de Baden rebrilha em novas cores

Mario Adnet e Philippe Baden Powell tiram afro-sambas inéditos de seu baú

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Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

De tempos em tempos, os célebres afro-sambas de Baden Powell (1937-2000) e Vinicius de Moraes (1913-1980) recuperam o fôlego pela ação de intérpretes de estilos variados. Mas nunca eles soaram como no álbum Afrosambajazz - A Música de Baden Powell (Biscoito Fino), que tem shows de lançamento hoje e amanhã no Auditório Ibirapuera. O violonista Mario Adnet e o pianista Philippe Baden Powell, filho mais velho do gênio do violão brasileiro, renovam a tradição, seguindo seus "instintos de arranjadores". Deram novo colorido aos afro-sambas, com orquestra de sopros e sessão rítmica, fazendo a ligação natural de Baden com o maestro Moacir Santos (1924- 2006), que foi um de seus mestres e guia máximo da musicalidade afro-brasileira. No Samba da Bênção, clássico ausente deste CD, Vinicius o homenageou com estes versos: "Moacir Santos/ Tu que não és um só, és tantos/ Como este Brasil de todos os santos." Ouça trecho de Ritmo Afro O ineditismo do projeto de Adnet e Philippe - selecionado no edital Natura Musical de 2008 - não diz respeito só aos brilhantes arranjos instrumentais, mas à revelação de sete composições de Baden que nunca tinham sido gravadas. Entre elas Caxangá de Oxalá, Lamento de Preto Velho, Ritmo Afro e Domingo de Ramos, algumas escritas só por Baden, outras em parceria com Philippe, Ildásio Tavares e Silvia Powell, mãe de Philippe e Marcel Powell, que também toca violão no CD. Há também temas pouco conhecidos, como Pai e Sermão, ambos com letras de Paulo César Pinheiro, outro parceiro dos mais importantes de Baden. Já dos clássicos com Vinicius são renovados Canto de Xangô, Lamento de Exu, Canto de Ossanha, Canto de Iemanjá e Berimbau. A centelha do projeto foi a lembrança por parte de Philippe do nome e do número de telefone de Adnet anotados por Baden numa de suas partituras. Como a maioria dos violonistas modernos, Adnet sempre teve Baden entre suas referências ("foi meu primeiro ídolo"), mas só foi conhecê-lo pessoalmente em 2000. Mario Adnet vem de outros projetos bem-sucedidos como o histórico Ouro Negro - sobre a obra monumental de Moacir Santos, com participação do dono da mina - de 2001. Pouco tempo depois que realizou Jobim Sinfônico (2003), com Paulo Jobim, Philippe e Silvia Powell procurou por ele e Mariza Adnet propondo fazer um projeto sobre Baden. "A ideia era fazer um songbook, gravação e tal, mas não existia um conceito específico sobre o que seria essa gravação", conta Adnet em seu apartamento na Gávea, Rio. "A ideia mesmo aconteceu depois que fiz o projeto Jobim Jazz, em 2007. Sobre Baden Powell, eu queria dar uma atenção especial aos afro-sambas. Sabia que havia músicas inéditas, porque elas já estiveram aqui na minha mão. Era um pacotão de partituras que Philippe deixou aqui." Philippe, de mudança para Paris, levou o "baú" com ele e os dois acabaram tomando as decisões via internet. No computador, Adnet ilustra a conversa mostrando as condições em que estavam as partituras. Das inéditas não havia gravações, algumas eram fragmentos em partituras esparsas, com anotações de possíveis letras ou sugestões de "climas", que Adnet e Philippe tiveram de decifrar. "Canto de Iansã a gente tinha pedaços em três folhas diferentes, com indicações sobre o que significava aquilo. Só que não tem a parte final. Acho que ele nem deixou a partitura conclusiva", conta Adnet. "Ritmo Afro foi um exercício que Baden preparou para Philippe, dando uma ideia harmônica, e pediu para ele desenvolver. Ficou muito legal, a ideia é muito boa. Deve ser da década de 80 ou 90." Sobre Sermão, gravada por Marcelo Vianna em 2007, ele sabia de um registro de 1977 de Baden com a cantora Maria d?Apparecida na Europa, mas só a conheceu no filme Saravah, de Pierre Barouh, em que o então jovem violonista aparece tocando esse tema, em 1969. Adnet e Philippe dividiram os trabalhos de arranjos do CD: cada um fez metade. Em 2007, o violonista já tinha ideia de fazer o projeto com orquestras de metal e foi então que o pianista sugeriu o título Afrosambajazz, que o próprio Philippe diz que "não veio do nada", há um propósito. Tanto ele como Adnet reconhecem o apelo internacional dessa fusão de três vertentes poderosas da música negra mundial. A aproximação de Baden com a sonoridade de Moacir Santos, que salta aos ouvidos de imediato na percepção do CD, foi feita "sem o menor esforço". "Eles tinham uma ligação muito forte, tenho até depoimentos de um para o outro falando dessa irmandade, como se fossem unha e carne. Moacir falando dos dedos de Baden e Baden falando que desejava que os filhos tivessem aulas com Moacir por causa de sua música superior." Ao mesmo que Baden estudava música com Moacir, também "divagavam por filosofias e coisas sobrenaturais, teosofia, ocultismo". A origem dos afro-sambas pode não ter sido só o resultado do encontro com Vinicius, depois de sua célebre temporada na Bahia, em que se envolveu com o candomblé e selou a parceria mais marcante da carreira de Baden em 1966. "Sei que Baden aprendeu as escalas dos modos gregos da música com Moacir. E Moacir passava exercícios para ele compor nesses modos. E pelo que sei, foram nessas brincadeiras que nasceram os afro-sambas. Pude até comprovar em algumas delas. Canto de Iemanjá foi construída em cima de um modo específico e eu respeitei esse modo no arranjo. Então existem essas duas histórias sobre os afro-sambas. A do Vinicius e essa que é mais oculta." Serviço Afrosambajazz. Auditório Ibirapuera (800 lugs.). Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n.º, Portão 2 do Parque do Ibirapuera, telefone 3629-1014. Hoje e amanhã, às 21 h. R$ 30 Misteriosas Ligações COINCIDÊNCIAS: No dia 28 de maio de 2010, Mario Adnet, Zé Nogueira e uma superbanda vão fazer a primeira de suas apresentações de Ouro Negro no Lincoln Center, em Nova York. Foi justamente nessa data que o álbum foi lançado no Brasil em 2001. "Estou tentando para que a gente consiga levar o máximo possível da banda." Essa não é a única coincidência entre as histórias do pianista e de Baden Powell e Moacir Santos. Adnet conta que desde a primeira vez que ouviu Canto de Ossanha, em 1970, ficou impressionado com Baden. Só foi conhecê-lo em 2000, ao entrevistá-lo para uma série de reportagens para o jornal O Globo. "É nessa entrevista que tem Moacir falando dele e ele falando do Moacir. Aí teve a história de ele anotar meu nome e telefone na partitura. E ele colocou do lado, entre parênteses ?jornalista?, embora soubesse que eu era músico. Depois ele foi assistir a um show meu no Heineken Concerts. Não o vi mais. E descobri uma coisa incrível: ele morreu no dia do meu aniversário, 26 de setembro." Poucos dias atrás, Adnet estava olhando umas matérias jornalísticas sobre Moacir e se deu conta de que ele morreu no dia 6 de agosto. "Eu sabia disso, mas a gente não fica com tudo na cabeça. Depois fui ver que esse era o dia de nascimento do Baden. Se eu pegar essas informações e fizer uma regra de três pode dar o dia da minha morte", brinca Adnet. O show de Afrosambajazz, que estreou no Rio terça-feira, chega a Belo Horizonte nos dias 5 e 6 de agosto.

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