Osesp mostra virtuosismo com maestro russo

Guennádi Rojdéstvienski conduziu com delicadeza um programa que a orquestra executou com nível excelente

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Por Crítica Lauro Machado Coelho
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Pensar que aquele senhor de cabelos brancos conheceu Dmitri Dmítrievitch, conviveu e colaborou com ele várias vezes! A interpretação que Guennádi Rojdéstvienski ofereceu da Sinfonia nº 10 em mi menor op. 93, de Shostakóvitch, em seu primeiro concerto à frente da Osesp, foi a de quem tem com a obra a mais perfeita familiaridade. Com seu gestual muito discreto, Rojdéstvienski conduziu a orquestra com segurança através dos meandros dessa vasta construção sinfônica, estreada em dezembro de 1953, logo após a morte de Stálin. O imenso painel do Moderato inicial, de temas longos, tensão crescente, episódios em que a flauta ou o fagote dialogam com as cordas, e culminam em dilacerantes trinados estridentes dos metais, foi desenvolvido com absoluto senso de estrutura. Basta citar a segurança com que a Osesp fez erguer-se o angustiado primeiro crescendo do movimento. Ou a dramaticidade do fim, com o desolado solo do clarinete enquadrado por soturnos pianíssimos. O mecanicismo implacável do scherzo, com seus ritmos deslocados, reminiscentes do gopak georgiano, no qual - segundo o biógrafo Solomón Vólkov - Shostakóvitch teria retratado Stálin, foi uma demonstração espetacular de virtuosismo orquestral. Com essa imagem da incontrolável máquina infernal que foi a tirania stalinista, contrasta a complexidade do Allegretto, no qual surge, pela primeira vez, a assinatura do compositor - DSCH (ré, mi bemol, dó, si) - símbolo da criação artística que, apesar de todas as dificuldades, permite ao indivíduo resistir e sobreviver. Com ela convive o insistente apelo da trompa - mi, lá, mi, ré, lá - no qual, combinando as notações germânica e latina, Shostakóvitch escreveu o nome de sua aluna Elmira Nazírova, pela qual estava apaixonado na época. O significado é claro: do amor também, que dá à vida humana seu pleno significado, vem a força para vencer a adversidade. Foi profundamente emocionante a maneira como Rojdéstvienski realizou esse terceiro movimento, centro nevrálgico da sinfonia, depois do qual o último movimento, perpassado de intervenções solistas que evidenciaram o nível atingido pelos músicos da Osesp, leva a uma conclusão ambígua típica de Shostakóvitch. Aparentemente, o clima de festa popular freneticamente dançante é de exaltação. Mas ele é percorrido por uma corrente subterrânea de inquietação, de amargura. Com a sensação de alívio ao ver chegar o fim da Era Stalin, convive com a incerteza, o medo do que poderá vir. O som do violino de Sasha Rojdéstvienski é pequeno, pouco brilhante e, por vezes, o solista encontra-se demasiado nivelado com a orquestra. Mas o filho do maestro é muito bom violinista - quando demonstrou isso claramente foi na página de Bach que tocou em extra. Foi muito persuasiva a maneira como se desincumbiu das exigências virtuosísticas do Concerto nº 1 em ré maior op. 19, de Prokófiev, ouvido no final da primeira parte: notas muito árduas no registro agudo, trinados, staccatos, arpejos quebrados. Foi particularmente boa a forma como executou o final do Scherzo vivacíssimo, em que explode toda a veia sardônica do compositor. O tratamento orquestral dado por Rojdéstvienski a esse concerto foi de extrema sutileza: explorou com felicidade as filigranas da orquestração, sobretudo as que emolduram a bela cantilena do Finale moderato. As Estações, de Aleksandr Glazunóv, com que a apresentação se iniciou, tem as qualidades e os defeitos da música para balé. Sem chegar ao nível de um Tchaikóvski - que às vezes Glazunóv imita claramente -, é partitura melodiosa, colorida, com momentos dançantes envolventes. Mas não resiste bem à audição sem o suporte da dança. Sua longa sequência de movimentos mais ou menos curtos acaba tornando-se repetitiva e tediosa. Essas observações, porém, nada têm a ver com a qualidade da execução orquestral, que foi de nível excelente. SEGUNDO CONCERTO Em contraste com o neoclassicismo sorridente da primeira (a Clássica), a Sinfonia nº 2 em ré menor op. 40, de Serguêi Prokófiev, é produto típico do construtivismo dos inquietos anos 20, com sua evocação de sociedade moderna e industrializada. Foi boa escolha para o segundo concerto regido por Guennádi Rojdéstvienski à frente da Osesp, pois, por suas sonoridades angulosas e cruas, harmonias asperamente politonais, a Segunda é a mais raramente ouvida das sete sinfonias de Prokófiev. Foi muito enérgica e rica em contrastes a execução da Osesp desse amplo painel em dois grandes movimentos, em especial no coral de metais que introduz o segundo tema do Allegro ben articolato; ou na impressionante passagem para as cordas graves com que se abre o desenvolvimento desse primeiro tempo. O segundo movimento, iniciado com uma melodia no oboé, surpreendentemente delicada dentro do contexto geral da obra, contém um conjunto de seis variações a que a orquestra deu tratamento muito diferenciado: o tom folclórico, de ritmos sincopados, da segunda, em contraste com a energia da terceira; a extroversão da quinta levando à apoteótica síntese temática da sexta. E foi muito bonita a forma como Rojdéstvienski conduziu o apaziguado final da sinfonia. Os dois poemas sinfônicos de Anatóli Liádov que enquadraram, na primeira parte, a sinfonia de Prokófiev, ilustram o namoro russo com o simbolismo e o impressionismo. O Lago Encantado op. 62, peça atemática, que visa a sugerir o movimento da água com suas fluidas texturas de cordas divididas, flauta, celesta e harpa, soa hoje bastante datada. Em compensação, Bába Yága op. 56, evocando a feiticeira dos contos populares, é mais interessante, com seu tema grotesco no fagote e seu final ironicamente brusco. A ambos a Osesp e Rojdéstvienski deram interpretação muito convincente. A apresentação do Concerto nº 2 em sol maior op. 44, de Tchaikóvski, que ocupou a segunda parte, deixou a desejar, não fazendo jus à sólida reputação de Viktória Postníkova, esposa do maestro, como intérprete do compositor. Foi uma execução de acabamento meio grosseiro, com passagens demasiado marteladas, sobretudo no Allegro brillante inicial - que é enérgico, mas não precisa ser truculento. O que é estranho pois, no extra - o Outono das Estações op. 37bis do próprio Tchaikóvski -, a pianista deu mostras de ser capaz de um toque delicado e envolvente. Além disso, da maneira atropelada como Postníkova atacou as passagens de bravura tanto do primeiro movimento quanto do Allegro con fuoco final, resultou um fraseado às vezes bem mal definido. O melhor momento foi o Andante non troppo central, não só pela conduta mais pausada e reflexiva da solista, mas sobretudo pelo excelente desempenho de Emanuele Baldini e Eliah Sakukáshev, no verdadeiro concerto tríplice que se estabelece, quando o violino e o violoncelo dialogam um com o outro, respondidos pelo piano.

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