PUBLICIDADE

Os tremoços do Canindé

Por Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

O Guia semanal do Estadão, na semana passada, trouxe matéria sobre as padarias que na retaguarda ajudaram a Portuguesa na volta à primeira divisão do futebol. Ela é daqueles times que, como o Juventus da Mooca, estão no coração das pessoas. Gostamos da Portuguesa, ela é simpática, está sempre ali numa posição intermediária. Por artes do futebol, a Portuguesa foi caindo, caindo, caiu. Freqüento o Canindé desde o tempo em que era chamado ''''a ilha de madeira''''. Mais do que uma referência à Ilha da Madeira, o estádio era inteiro de madeira mesmo, arquibancadas, vestiários, tudo. Em lugar do alambrado havia um cerca baixa de ripas pontiagudas. Se o torcedor quisesse, era pular e entrar no campo, mas não me lembro de isso ter acontecido algum dia. Parecia uma daquelas cerquinhas que rodeiam os jardins das casas. Aliás, rodeavam, hoje, com a violência, as casas têm muros altos ou grades de ferro. Repórter da Última Hora, anos atrás, às vezes era mandado pelo Álvaro Paes Leme, redator-chefe do jornal, não para cobrir jogos, mas para levantar side-stories, rotuladas ''''por trás do gol''''. Sempre acompanhado pelo repórter esportivo José Roberto Malía que perdi de vista. Onde andará? Sempre assisti aos jogos no Canindé de pé junto à cerquinha de ripas, era como participar do jogo, estar dentro do campo. Décadas atrás, quem mandava no Canindé era um clube alemão (não sei o nome) que, na época da segunda grande guerra, se viu sufocado com a situação. A Alemanha compunha com a Itália e o Japão o chamado Eixo contra o qual se batiam os aliados. No Brasil, italianos, alemães e japoneses foram perseguidos (sobre os japoneses leiam O Súdito, de Jorge Okubaro, imperdível), tiveram de mudar os nomes de casas comerciais, times, clubes, etc. Foi quando o Palestra Itália surgiu como Palmeiras. O clube alemão vendeu suas instalações ao São Paulo Futebol Clube. Na altura de 1952, o São Paulo vendeu o Canindé à Portuguesa e comprou o terreno do Morumbi (na verdade, ali é Jardim Leonor) e ergueu o estádio que vai sediar o primeiro jogo da Copa do Mundo, se não houver sacanagens do Teixeira da CBF. Na época que José Roberto e eu íamos ao Canindé (ele cobria o jogo, eu buscava casos), o goleiro da portuguesa era um jovem alto e magro que tinha dois apelidos entre os torcedores. Ao menos era o que eu ouvia: Louco e Papel. Louco porque fazia defesas estranhas, saía do gol atabalhoadamente, quando se esperava que fizesse uma coisa, fazia outra, atirava-se nos pés dos atacantes sem medo de ser destroçado, porque era frágil mesmo, daí o apelido Papel. Seu nome? Felix. Depois goleiro da seleção, campeão mundial. Às vezes, contudo, a Lusa era abandonada. Certa noite de chuva, Malía e eu fomos ao Pacaembu, acho que era Portuguesa contra São Bento, não tenho certeza, já se passaram tantos anos e não sou daqueles que sabem a escalação de todos os times, todos os tempos. Contamos 11 pessoas assistindo. Havia mais gente dentro de campo. A ilha de madeira caiu, em seu lugar construíram um novo estádio. Com a construção, uma lenda. Nunca soube se verdade, se mentira, se boato inimigo, se piada. É a célebre história de um trator que teria ficado no meio do campo, terminadas as obras. Como o gramado está situado realmente numa ilha (para manter a tradição), como tirar o trator de lá? Entre campo, arquibancadas e gerais há um fosso com dois metros de altura. Para quem nunca foi, saiba que no estádio da Lusa se tem visão perfeita de qualquer lugar, uma vez que, não sendo monumental, ele oferece a sensação de aconchego, intimidade. A tradição portuguesa de comer tremoço está instalada no Canindé. Passam vendedores de tudo, como em todos os estádios, mas ali se acrescentou o tremoço com sal, uma delícia que vem desaparecendo até dos bares. É um estádio que se pode acessar a pé, basta descer na Estação Armênia (antiga Ponte Pequena) do metrô e caminhar um pouco. Voltando ao Guia do Estadão, na lista das padarias apoiadoras não vi a CPL aqui do bairro, comandada pelo José Dias. Mas ela fez parte da infra promovida pelos padeiros. A reportagem foi feita antes de sua adesão. José é daqueles que vão aos jogos, convidam as pessoas, estimulam, torcem, fazem propaganda, incentivam, sofrem, se angustiam. Ele gosta não só da Portuguesa, mas de todo o complexo do Canindé. Não tem semana em que não convide amigos para ouvir fados e comer bacalhau no restaurante atrás do estádio. A padaria é dos points mais freqüentados do bairro numa rua que vem se sofisticando. Três lojas de decoração aqui se instalaram. O paisagista Gil Fialho desenhou na calçada do seu estúdio um caminhozinho de pequeninas luzes que todos param para ver à noite. O lado feio corre por conta de um terreno baldio que já foi estacionamento e hoje virou depósito de lixo. Bem que a proprietária, a construtora Boghosian, podia dar um jeito, basta um muro. A padaria tem um toldo que a deixa com leve cara parisiense. Mesas e cadeiras de calçada permanentemente lotadas. Das primeiras da cidade a vender a cerveja portuguesa Sagres, opção para quem detesta o Zeca Pagodinho, como eu. Mas olhem que curioso, aqui nunca vi o tremoço. Descuido ou a clientela é diferente? Quanto à Lusa, voltaremos a receber os grandes no Canindé? Comendo tremoço, mesmo sem cerveja?

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.