PUBLICIDADE

Os Saltimbancos ganha nova versão em Portugal

Musical de Chico Buarque, que estreia no Porto sob direção de Gabriel Villela, mescla as culturas brasileira e portuguesa

Por Dib Carneiro Neto
Atualização:

"Segure este guarda-chuva com um pouco mais de delicadeza. Mais vibração ao levantar o cravo na cena final, ainda está sutil demais. Deixe essa luz do palco acesa, porque fica tudo muito deprimido com o palco apagado e eu preciso agora falar com o elenco. Fechem direito esses potes de glitter, senão seca: sabem quanto custa cada pote desses? Você é muito bom de maquiagem, por isso, faça a sua e depois ajude os outros." Eis o diretor mineiro Gabriel Villela em ação, no palco e nos camarins do Teatro Campo Alegre, na cidade do Porto, em Portugal, que abriga a veterana companhia portuguesa Seiva Trupe e onde Villela estreia hoje sua terceira versão do musical infantil Os Saltimbancos, de Chico Buarque, duas delas encenadas em Portugal. Ele está no Porto desde novembro do ano passado, na companhia do diretor musical do espetáculo, o também mineiro Ernani Maletta, professor-doutor da Universidade Federal de Minas Gerais. A conhecida história do quarteto de animais (jumento, galinha, gata e cachorro) que sai do campo, cansado de sofrer maus-tratos de seus donos, e vai tentar realizar seus sonhos musicais na cidade grande, ganha, na visão acurada de Villela, uma rica leitura de integração entre as culturas portuguesa e brasileira. "Villela é um diretor que nos interessa muito, porque não abre mão da detalhista estética brasileira, que nos fascina, e, ao mesmo tempo, consegue uma universalidade cênica e uma atualidade que encantam os portugueses e os europeus, de um modo geral", diz o veterano ator português Júlio Cardoso, fundador da Seiva Trupe. "Esta peça de Chico e Sérgio Bardotti é infantil, mas tem metáforas inteligentes para todas as idades, e não subestima a criança", diz Villela, que também já montou Shakespeare e Heiner Muller para os portugueses. "Na bela história dos saltimbancos, há um forte pano de fundo das ditaduras pelas quais os dois países já passaram, sem falar na incrível atualidade de tocar no tema do culto às falsas celebridades." De fato, nos ensaios abertos realizados na semana passada, os convidados, de Brasil e Portugal, emocionaram-se igualmente com as sutis referências, por exemplo, à Revolução dos Cravos. Para reforçar o potencial político do espetáculo, Villela optou inclusive por interferir na trilha, incluindo canções como Tanto Mar e Os Argonautas. No deboche às celebridades, faz a manhosa gata desfiar o tema do bregacult supermusical Cats, a canção Memory, muito conhecida pela voz de Barbra Streisand. Como Villela também incluiu na peça um encantador trio de clowns, decidiu para esta montagem incluir um intermezzo entre os dois atos com um solo da canção Valsa dos Clowns, de Chico e Edu Lobo, feita para a trilha do balé O Grande Circo Místico. Resultou num número adicional que vai do lúdico ao poético. Outro atrativo para as crianças locais serão os trechos de músicas do folclore português inseridas na canção das notas musicais. O texto dos diálogos (não das letras das músicas, claro) sofreu alterações importantes, para casar harmoniosamente o português do Brasil com o de Portugal. "Mas buscamos fazer isso com o próprio elenco para o processo ficar mais rico, e eles escolheram expressões de igual força poética", comenta Villela. Um exemplo: "Comer boia e depois se mandar" virou "Comer uma bucha e depois se arrancar", adaptação regional que preserva a força das palavras do Brasil. Outro exemplo: a palavra Detefon, na música da gata, virou front line, que é como os portugueses conhecem os inseticidas. O elenco escolhido desta vez, em incansáveis testes realizados por Villela, Maletta e o assistente de direção, o português Miguel Rosas, desde novembro, não ultrapassa a faixa etária dos 25 anos: Ana Machado, Catarina Guerreiro, Fernanda Paulo, Isabel Nogueira, Jacinto Durães, João Melo e Tiago Vouga. "São jovens do Porto e de Lisboa, com grande potencial para cantar e interpretar", avalia Maletta, o diretor musical. "Eles surpreendem pela facilidade com que se adaptam à diversidade rítmica que o Gabriel (Villela) fez questão de incorporar à peça. Quando cantam juntos, a homogeneidade do som é espantosa. Isso tem a ver com generosidade, porque eles têm timbres individuais riquíssimos, mas não se deixam levar pela vaidade e se integram musicalmente com toda humildade." Outro mineiro de talento, Daniel Maia foi o grande responsável pelas mudanças nos arranjos dos conhecidos temas dos personagens. A música do cachorro virou frevo, o tema da ??bicharia agora é xaxado, a galinha canta moda de viola caipira e acaba no samba, o jumento canta xote, a gata vai de jazz e assim por diante. Tem até rap e, claro, referências ao fado. Os figurinos de Villela são um tesouro à parte. Dificilmente, no Brasil, se vê numa peça infantil tamanho requinte de informação acoplado às peças de roupa. O projeto cenográfico de J.C. Serroni preenche o palco, desde a montagem brasileira, em 2001, no TBC, com toda a poesia visual de uma carroça dos artistas mambembes. As coreografias são de Índio Queirós, brasileiro radicado em Portugal, e os desenhos de luz e som estão a cargo, respectivamente, dos portugueses Júlio Filipe e José Prata. A peça fica em cartaz no Porto até 31 de março, depois segue para um mês na cidade de Faro, onde Villela é muito conhecido por ter dirigido por lá o balé Sonho de Uma Noite de Verão. A temporada no Porto terá inacreditáveis 11 sessões semanais (duas por dia de terça a sábado, uma no domingo e descanso na segunda), número que surpreende porque é pura utopia para a realidade atual do teatro brasileiro. Tantas léguas a nos separar...

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.