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Os novos desafios de um mundo

em mutação Um ciclo de palestras e dois novos livros celebram os 30 anos do Artepensamento

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Festa no arraial da inteligência. Com o lançamento de dois livros e um novo ciclo de palestras, o Centro de Estudos Artepensamento celebra, na próxima segunda-feira, o percurso de 30 anos de reflexões e debates que herdou do antigo Centro de Estudos e Pesquisas da Funarte, também criado pelo professor Adauto Novaes. O tempo passa, o tempo voa, mas a inquietação iluminista de Novaes continua numa boa. Os dois centros por ele imaginados e celebrizados foram as primeiras "casas do saber" do País após a desativação do Colégio do Brasil, que o ex-ministro Eduardo Portela montou à sombra da editora Tempo Brasileiro, na segunda metade da década de 1960. A partir do Rio de Janeiro, seus ciclos de palestras - bem mais diversificados e abrangentes do que os cursos de extensão universitária disponíveis - alcançaram outras capitais, ampliando seu raio de atuação através das transcrições em livros de todas as ideias nelas discutidas. Os dois últimos volumes - A Condição Humana (Agir) e VidaVícioVirtude (Senac/Sesc São Paulo) - serão lançados na abertura do novo curso: às 19 horas de segunda-feira, na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio, e, na noite seguinte, em São Paulo (Sesc da Avenida Paulista) e Belo Horizonte (Casa de Cultura Fiat). Terceiro movimento do ciclo Mutações, iniciado em 2007, A Experiência do Pensamento prolonga e refina as discussões suscitas pela "nova configuração do mundo" dominado pela tecnociência. Como entendê-lo sem os velhos e obsoletos conceitos que explicavam o mundo anterior à hipercomputação, à engenharia genética, à robótica, à neurociência e à nanotecnologia? Como situar o homem (ou a condição humana) nesse contexto? A essas perguntas, tematizadas nos dois primeiros movimentos, outra se sobrepõe: como, no mundo dominado pela tecnociência, se faz a experiência do pensamento, sem ser a reboque das decisões técnicas? Com ideias diferentes. Mas nada de tábula rasa. Não existe pensamento acabado, definitivo, "pensado o suficiente", ressalta Novaes. "É preciso voltar sempre aos mesmos conceitos e dar a eles outras formas, pequenos renascimentos." Frédéric Gross, editor dos últimos cursos de Michel Foucault no Collège de France e décimo palestrante do ciclo, defende, com outras palavras, a reciclagem de antigas e humanizadoras técnicas elaboradas nas grandes civilizações, desde os gregos e romanos, destacando o legado filosófico e existencial dos estoicos, dos epicuristas, dos céticos, e até as lições de humildade que nos deram os franciscanos do fim da Idade Média. No texto introdutório que escreveu para o folheto do curso, Novaes retoma uma reivindicação do escritor austríaco Robert Musil (é preciso "destronizar a ideocracia") e uma utopia do francês Jacques Bouveresse, sintetizada na expressão "democracia das ideias". Em miúdos: trabalhar, simultaneamente, com as ideias de natureza científica e as de natureza filosófica, sem que nenhuma se imponha às demais, pois a organização da sociedade depende cada vez menos da invenção política e cada vez mais da aplicação de técnicas diversas. Será esta a mensagem deixada pelo professor de filosofia da USP Franklin Leopoldo Silva, na segunda noite do ciclo. Retomando um mote de Nietzsche, para quem o problema da ciência não pode ser abordado no domínio da ciência, Martin Heidegger argumentava que a ciência "não pensa", que ninguém pode dizer o que é a física com os métodos da física, necessitando, portanto, de outro instrumental, de outra modalidade de reflexão e expressão. Por observações desse teor, Heidegger será muito citado nas 21 palestras que fecham a trilogia sobre as Mutações, a começar pela intervenção de Oswaldo Giacoia Junior, na terceira noite. O professor da Unicamp reprova e receia tanto a condenação "reacionária e maniqueísta" da tecnologia (e a "ameaça escatológica de terrores irracionais" que costuma acompanhá-la) como o "ingênuo deslumbramento pelas virtualidade prometeicas do transumanismo", sugerindo uma postura meditativa refratária ao ativismo político e ao "falatório estéril dos saberes insulares", um pensar que recupere as ligações entre o conhecer, o sentir, o imaginar, o lembrar, o cuidar e o esperar. Pés no chão e mentes abertas. Na palestra seguinte, com o insinuante título de O Que Poincaré Sussurrou para Valéry, o físico Luiz Alberto Oliveira também mencionará Heidegger, mas sem deixar de puxar a brasa para a sardinha da ciência. Ele duvida que as demais "potências do espírito", ou seja, a filosofia e a arte, possam dar conta "do caráter intensamente criativo manifesto pelas ciências contemporâneas". Por quê? Porque a filosofia e a arte parecem ignorar como a Ciência pensa. Outro obstáculo, a ser ressaltado na quinta conferência por Francis Wolff, mestre da Escola Normal Superior de Paris, é a perda de autonomia dos diferentes pensamentos racionais (científico, moral, técnico), cada vez mais dependentes da "racionalidade econômica". Karl Marx talvez tivesse algo a nos dizer sobre essa dependência e a nossa ignorância científica (afinal, manipulamos objetos técnicos sem saber como eles de fato funcionam), reinventando um novo conceito de alienação. O conceito original só em parte nos serve para iluminar o buraco negro em que nos metemos. Disso teremos provas na sexta à noite, quando Olgária Mattos falará sobre os delimites da razão, o esgotamento ético, e os males (estresse, depressão, sensação de exclusão, pressões de concorrência) e a satisfação ilusória de desejos promovidos pelo "turbocapitalismo". Partindo do alerta de Jurgen Habermas para os perigos inerentes à transformação de questões políticas em questões técnicas - isso ainda na década de 1960 -, o cientista político Sergio Paulo Rouanet tangenciará Marx (e sua visão do capitalismo como intrinsecamente, e não circunstancialmente, imoral) e a atual crise econômica, lamentará o banimento do político pela lógica do mercado, o esvaziamento da ética, a hegemonia da tecnociência (que não aceita limites morais), concluindo sua conferência com duas indagações: "Teriam a moralização e a politização da economia forças para opor-se ao complexo técnico-científico cuja vocação hegemônica é tão ameaçadora? Ou poderiam elas extrapolar os limites em que seriam saudáveis, transformando-se elas próprias em novas ameaças, como ocorreria se a pesquisa científica passasse a subordinar-se a um moralismo religioso ou aos ditadores de uma racionalidade meramente eleitoral?" Nenhuma dessas perguntas pode ser respondida, adverte Rouanet. "Mas devem ser formuladas."

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