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Os interesses encontram-se em outro lugar

Revista da USP apresenta dossiê sobre os 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil

Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

Uma das efemérides mais discutidas neste ano foram os 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Os meios de comunicação se referiram à exaustão ao fato, com ênfase nas alterações provocadas pela presença dos Braganças em solo nacional. Nascia uma nação a caminho da independência enquanto se realizavam certas novidades, como a abertura dos portos ao comércio internacional, a criação da Casa da Moeda e a fundação da Biblioteca Nacional. A Revista da USP (edição 79, 224 págs., R$ 20) propõe outro enfoque no dossiê Família Real no Brasil, composto de 11 ensaios e organizado por Iris Kantor e Laura de Mello e Souza, professoras de história da USP. O exame das continuidades e rupturas históricas deixa de ser privilegiado para abrir espaço à investigação dos impactos imediatos da vinda da coroa portuguesa. 1808 não é um ano de resultados positivos apenas, como uma análise apressada pode sugerir. Adriana Salay Leme, João Paulo Garrido Pimenta, Lúcia Bastos Pereira das Neves, Neil Safier e Raquel Stoiani falam do interesse e da ansiedade com que rio-platenses e norte-americanos acompanharam a viagem da corte de d. João VI, que durou 53 dias. As notícias sobre a guerra na Europa, ao chegarem ao Rio, reforçaram o poder da dinastia dos Braganças. José Jobson de Andrade Arruda escreve sobre a relevância da produção brasileira de algodão para a indústria britânica. Lilia Moritz Schwarcz apresenta o Brasil idealizado por artistas franceses, tão crentes no mito do paraíso quanto os viajantes de três séculos antes, quando se descobriu o Novo Mundo. Regina Celestina e Edu Otsuka lembram que, apesar das expectativas, a chegada da corte mudou pouca coisa na vida de negros, índios e indivíduos das baixas classes urbanas. Rafael Marquese e João José Reis tratam do tráfico negreiro, mais intenso com a chegada de d. João, um monarca negreiro. Ganhou força a repressão aos quilombos e às práticas religiosas. O modelo brasileiro, ora renovado, inspirou Cuba, onde a prática escravista também deixou marcas indeléveis. Mais uma vez, o Brasil mostrava sua vocação para as esperanças irrealizadas. Professor da Universidade Federal da Bahia e autor de Domingos Sodré, Um Sacerdote Africano, João José Reis fala dessas esperanças que escorrem pelo ralo em Dono da Terra Chegou, Cento e Cincoenta Acabou? O número se refere à medida estabelecida pelo conde da Ponte, governador da Bahia entre 1805 e 1809, segundo a qual os escravos sem salvo-conduto deveriam se recolher na hora das ave-marias. Quem contrariasse a decisão era punido com 150 chicotadas. Quando o príncipe regente d. João aportou na Bahia, em 1808, a caminho do Rio, os escravos fizeram o governador saber sua resolução: "Dono da Terra chegou,/ Cento e cincoenta acabou". Tola e dolorosa ilusão. Nos 35 dias de d. João na Bahia, entre 22 de janeiro e 26 de fevereiro, a ponta do chicote descansou, decisão do conde da Ponte para mostrar a generosidade de Sua Alteza Real. Na prática não foi possível saber se as costas dos escravos tiveram alívio. A certeza é que o governador da Bahia era intolerante com os escravos. Suas medidas, entre as quais criar rede de delatores e conceder patentes de capitão-do-mato a granel, tinham o apoio irrestrito da metrópole. Quando a família real deixou a Bahia, o governador mandou colocar nas ruas versos em resposta irônica: "Dono da Terra abalou,/ Cento e Cincoenta voltou". A demanda dos escravos por dignidade foi ignorada. Os interesses do mundo português, em agonia, encontravam-se em outro lugar - confirmando que, no Brasil, elite e povo nunca habitam o mesmo espaço. Espaço de onde, ainda hoje, o interesse geral permanece apartado.

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