Os geniais ''loucos por Bill Evans''

Era de refinamento iniciada pelo jazzista é alimentada por diferentes músicos

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Não seria exagero dizer que quase todo pianista de jazz em atividade tem, impressas em seu DNA, as geniais marcas criativas de Bill Evans (1929-1980). Ninguém passa incólume pelo refinamento de sua sonoridade, o gosto por harmonia inovadora, o toque originalíssimo e a capacidade de criar no instante da execução improvisos com qualidade de invenção comparável à música escrita de nomes tão ilustres quanto Mozart, Brahms ou Bartók. Que o digam o sessentão pianista Keith Jarrett, cujo Trio Standards (com Gary Peacock no contrabaixo e Jack DeJohnette à bateria) acaba de completar 25 anos com o excelente duplo My Foolish Heart (ECM); o cinquentão pianista Enrico Pieranunzi, que além de tocar como Evans, escreveu um livro de tiete, Ritratto d''Artista con Pianoforte''; e outro pianista iluminado, Brad Mehldau, de 37 anos, que há pouco mais de uma década monta um novo cânone de standards e se impõe como o mais talentoso da cena atual. Todos foram inoculados pela arte de Bill Evans sem, no entanto, limitar-se a reles clonagens, claro. A meio caminho entre Jarrett e Mehldau, a pianista brasileira Eliane Elias, de 48 anos, entra para o clube dos ''loucos por Bill Evans'' com o belíssimo e desigual Something for You - Eliane Elias Sings & Plays Bill Evans, que acaba de sair pela EMI. Há 27 anos radicada nos EUA, Eliane firmou-se como uma das mais qualificadas pianistas de jazz da atualidade. Faz música de alta qualidade, tem voz própria quando improvisa, curte plena maturidade como pianista. Mas, não se sabe por que, embarcou numas de também cantar. Eliane é apenas uma cantora média e não teria chance de se firmar apenas com sua voz. Então, pra que insistir? Até porque ela produziu esse CD, não precisou ceder a pressão de ninguém. São 17 faixas. Em 7 ela canta. Melhor esquecê-las (menos quando seu piano se intromete genialmente, como em A Sleepin'' Bee). Em compensação, as faixas em trio são primorosas, tão boas quanto as performances de Mehldau, embora mais convencionais. Em solo, Eliane é melhor ainda. A última faixa é um achado do marido de Eliane, o contrabaixista Marc Johnson, que, por ter tocado com Bill Evans entre 1978 e 1980, transformou-se em presença constante de todo tributo ao mestre. Eliane completou e colocou letra num fragmento de composição de uma fita do próprio Evans que foi dada a Johnson. A faixa começa com a precária fita de Evans e conclui com a performance de Eliane. Jarrett mergulhou na gravação de Mozart e Shostakovich, entre outros, e emula em seus improvisos jazzísticos bastante do universo pianístico romântico de Schumann, por exemplo. Mas Mehldau aproxima, de modo mais profundo, linguagens como as de Brahms e Shostakovich nos improvisos que faz de temas do Radiohead, do grupo grunge Soundgarden ou do Oasis, de um lado; e, de outro, temas próprios misturam-se com clássicos como The Very Thought of You, de Ray Noble, More Than You Know, de Vincent Youmans, e Countdown, de John Coltrane. Brad Mehldau Trio Live, álbum duplo recém-lançado no mercado internacional pela Nonesuch, registra o melhor da música apresentada em outubro de 2006 no Villa Vanguard nova-iorquino. É antológico. São duas horas e meia de música à flor da pele, como nos acostumou o Standards Trio de Jarrett. Sem menosprezar o excepcional baterista Jorge Rossy, o fato é que sua substituição por Jeff Ballard deu outra dimensão ao trio. Apaixonado por Tony Williams (do quinteto acústico de Miles Davis) e Elvin Jones, Ballard é tão preciso como o primeiro e tão inquieto como o segundo. Nunca descansa, comenta sempre o que os parceiros fazem. Encaixou como luva ao lado do contrabaixo de Larry Grenadier, que permanece em nível estratosférico, construindo melodias que dão suporte harmônico e rítmico ao grupo, mas subsistem sozinhas, tamanha a qualidade de invenção. Comece ouvindo O Que Será, de Chico Buarque. Mehldau está mais econômico, privilegia os silêncios. No caso dessa canção, ele enfatiza as notas repetidas para construir contrapontos que se tornam complexos à medida que avança o improviso. Jamais deixa o leme; não há solos dos parceiros. O piano conduz o discurso musical até o clímax encantatório final. Antológico o improviso com a mão esquerda, assim como o contraponto cerrado. São 12 temas, 12 performances em que o difícil é destacar o que há de mais notável. Quem sabe Black Hole Sun, do Soundgarden: 23 preciosos minutos com um sutil solo de bateria de Ballard; ou o standard The Very Thought of You, em que Mehldau toca piano solo, com ecos longínquos jarrettianos; e mesmo Wonderwall do Oasis, leitura que Bill Evans assinaria, onde se destaca também o contrabaixo irretocável de Grenadier. Grenadier e Ballard, aliás, são as estrelas de C.T.A, tema do saxofonista ''mainstream'' Jimmy Heath. Entre os temas originais, Ruby''s Rub evoca o universo de Herbie Hancock dos anos 60, B-Flat Waltz é evansiana até a medula; o anagrama Buddha Realm oferece um belo duo piano bateria no final; e Secret Beach recebe leitura mais bossa-novista, após a primeira versão no CD Mehldau/Matheny, de 2005.

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