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Os anos de juventude de Susan Sontag

Primeiro volume de seus Diários sai no Brasil, revelando a sua precocidade

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Aos 16 anos, a ensaísta e romancista norte-americana Susan Sontag (1933-2004) registrou em seu diário o fascínio provocado pela leitura do romance Os Moedeiros Falsos, do francês André Gide, justamente um livro sobre um homem, Edouard, que planeja publicar um romance chamado Os Moedeiros Falsos, ao mesmo tempo que escreve um diário. No final, Edouard conclui que seu diário é mais interessante e planeja editá-lo, no lugar do livro. Talvez Susan Sontag não subestimasse tanto sua produção literária, como Gide, que fez de Edouard seu alter ego, mas é provável que esse também fosse o plano da ensaísta, que manteve uma centena de cadernos guardados num armário de sua cobertura no Chelsea, em Nova York. O primeiro volume desses cadernos (Diários - 1947-1963, Companhia das Letras, 344 págs., R$ 51), colecionados desde a adolescência até o fim de sua vida, em 2004, começam agora a ser editados por seu filho, David Rieff, fruto de seu casamento com o professor e sociólogo Philip Rieff (1922-2006), de quem Susan foi assistente na juventude. Com o mestre ela aprendeu um bocado sobre Freud - o acadêmico Rieff escreveu um livro polêmico a respeito do psicanalista, Freud: The Mind of a Moralist, publicado há 50 anos, sem dar crédito à mulher, que o ajudou na pesquisa. Em contrapartida, ajudou-a a desenvolver seu estilo como crítica cultural, misturando em seu caldeirão erudito novas teorias psicológicas, filosóficas e referências teológicas. Susan tinha apenas 17 anos quando casou com Rieff, mas, antes dele, experimentou sexo com mulheres - e parte deste seu primeiro diário é dedicada a discutir casos amorosos com colegas da universidade. Em 1948, aos 15 anos, ela diz que reluta em escrever sobre suas tendências lésbicas, sentindo-se "à beira de um abismo ilimitado", para logo em seguida refletir: "É muito provável que ao lembrar-me disso, um dia, eu ache muita graça". No ano seguinte, enquanto lia Aldous Huxley (Ponto e Contraponto), que classifica como um tributo à sua embrionária capacidade crítica, descobre estar apaixonada por Irene Lyons, amante de sua primeira transa amorosa, Harriet Sohmers, mas, ao mesmo tempo, quer reagir e sentir que pode ter atração física por um homem, aceitando o convite de James Rowland Lucas para ver um concerto de Mozart em San Francisco. É justamente nessa cidade, a capital da liberdade sexual nos anos de juventude de Susan Sontag, que ela vai descobrir os bares gays até encontrar Philip Rieff, em 1950. O filho do casal, editor da mãe na Farrar, Strauss and Giroux, interfere justamente nesse ponto para alertar que não encontrou entradas para o ano de 1950 fora o casamento dos pais, afirmando que não havia nenhum caderno para os anos 1951 e 1952 entre os pertences da ensaísta. É a palavra do editor. O certo é que ainda teremos dois diários de Susan Sontag pela frente e David Rieff, no prefácio do primeiro, ensaia quase um pedido de desculpas por publicar esses três volumes. Justifica-se dizendo que a mãe não deixou instruções sobre o que fazer com seus papéis e admite que pensou até em queimá-los. Por sorte, desistiu da ideia. É possível, por meio desses diários, descobrir os autores de formação de Susan Sontag, uma ensaísta que conquistou o mundo intelectual com ensaios incontornáveis como Contra a Interpretação (1966) e Sobre Fotografia (1977), livro que reúne seis escritos fundamentais a respeito do tema desde o advento do daguerreótipo. A escritora revela como se sentiu "freneticamente impura" ao ler Os Irmãos Karamazov de Dostoievski (aos 16 anos) e assume que seu modelo de prosadora é mesmo Djuna Barnes, isso após ler o denso No Bosque da Noite. Faz, no entanto, objeções à "infantilidade de pensamento" de Hermann Hesse e admite que está longe de compreender Goethe, lendo o solilóquio final de Fausto em voz alta uma dúzia de vezes para "aprender com a minha própria burrice", que a impedia, segundo ela, de entender igualmente os monólogos dramáticos de Browning. Para uma garota de 16 anos, esse nível de exigência não era, obviamente, comum nos EUA dos anos 1940. Já mais velha, aos 24 anos, ela exercita sua ficção - que só viria a publicar madura, e ainda assim após se consagrar como ensaísta -, anotando em seu diário (em janeiro de 1957) a ideia para um conto "à maneira de Kafka". É uma história simples: um professor universitário à espera de uma promoção sofre com os rumores a seu respeito e com o "excesso de interpretação" do seu comportamento. Pura paranoia, extensiva à autora, que, no mesmo ano, define o que é um diário para ela: "O diário é um veículo para o meu sentido de individualidade. Ele me representa como emocional e espiritualmente independente". Para Susan, ele oferecia, enfim, uma alternativa. De fato, ela se recria ao registrar experiências amorosas frustradas e descobrir na literatura e nas artes uma saída para o claustrofóbico ambiente intelectual dos anos 1950.

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