Ópera-rock desconcerta pelo que tem de excessivo

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Por Luiz Carlos Merten
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LANTERNA MÁGICA: Há um mistério de Capitu, um enigma representado por essa mulher de olhos de cigana oblíqua e dissimulada que assombra há mais de um século a literatura brasileira. Luiz Fernando Carvalho sabe que existe essa discussão, apaixonada para uns, bizantina para outros - Capitolina traiu Bentinho com seu amigo seminarista? Ezequiel é filho de Escobar? Para o leitor que segue a letra do romance, basta a palavra do narrador - Bentinho , o Dom Casmurro - e Capitu, sim, termina por assumir a dimensão simbólica do adultério. Mas nunca será demais lembrar que Bentinho, como outros heróis machadianos, é um homem torturado pelas aparências e, neste sentido, talvez seja mais enganado por elas do que pela mulher. Machado foi um grande criador de personagens masculinos que parecem não viver no mundo real, mas num mudo de realidade projetada, que refaz segundo suas necessidades interiores. O caso extremo na obra machadiana (lembrava o hoje esquecido Cláudio Mello e Souza) era Rubião, em Quincas Borba, que ?pegou nada, levantou nada e cingiu nada, coroando-se imperador de um mundo imaginário?. O enigma de Capitu é, na verdade, uma criação de Bentinho, que, não se conhecendo internamente, não reconhece a mulher. Para traduzir isso em imagens, Luiz Fernando Carvalho criou um universo de artifícios e aparências, uma ópera-rock que muitas vezes desconcerta pelo que tem de excessivo. Mas a sua lanterna mágica, construída num só cenário que faz as vezes de tudo - igreja, bordel, salão de baile, a casa de Matacavalos e até um navio -, possui uma riqueza intrigante, o mesmo podendo-se dizer da interpretação. Seu velho Dom Casmurro, o magnífico Michel Melamed, treinado por Rodolfo Vaz - de Salmo 91 e do Grupo Galpão, de Belo Horizonte -, é um clown patético, voyeur caligaresco do próprio passado, que sorve, mais do que espia, aquele beijo que, quando jovem, deu em Capitu. Maria Fernanda Cândido é descarnada e vira puro olho, uma figura de tragédia. A sensualidade de Capitu fica toda entregue à exuberância de Letícia Persiles, mas há nela, simultaneamente, uma espécie de inocência a ressaltar que se trata, acima de tudo, de uma projeção do olhar masculino. Há mais de A Pedra do Reino e Hoje É Dia de Maria no barroquismo cênico de Capitu do que talvez exigisse uma adaptação fiel à ironia e à sutileza machadianas, no centenário da morte do autor. Mas a questão, enunciada no texto principal desta página, é justamente como ser fiel a Machado, na era da internet e da MTV? Luiz Fernando Carvalho, em várias oportunidades, já mostrou ser um êmulo de Luchino Visconti, o mais clássico dos cineastas revolucionários. Ele tem olho para o detalhe e para a beleza visual. Talvez não necessitasse tanto filmar através de rendas e brocados para caprichar na imagem. Por momentos, é como se a arte de Visconti interceptasse manifestações da cultura popular nordestina, mas, na realidade, há aqui, agora, uma inesperada intervenção. Como em Jules e Jim, de François Truffaut, adaptado de Henri-Pierre Roché, os cinejornais e filmes de época ora contextualizam, ora comentam a ação. Mas a verdadeira influência de Truffaut é outra. O universo de aparências de Bentinho - ele amava/desejava Capitu ou Escobar? - remete à amizade de Jules e Jim e ao efeito desestabilizador da presença de Catherine (Jeanne Moreau) na vida dos dois. Capitu, a microssérie, trata de adultério, mas por que não dizer que existe ali, também, um vestígio de homossexualismo reprimido? No fundo, tudo isso talvez seja irrelevante. Como Jules e Jim, o filme, é fundamentalmente sobre cinzas, sobre fantasmas, sobre as coisas que desaparecem e permanecem vivas na lembrança e as que ainda estão vivas mas já vão desaparecendo no imaginário, como prova a ciranda final de Bentinho com seus mortos. Capitu não há de agradar aos machadianos mais acadêmicos. Poderá até ser discutida, conceitualmente, à luz de Machado, mas, como espetáculo audiovisual, Luiz Fernando Carvalho nunca foi mais belo.

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