Onze narrativas entre o mundo real e o literário

Em O Informe de Brodie, apostando em 'histórias curtas e diretas', escritor não abre mão de temas caros à sua obra

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Por Rodrigo Lacerda
Atualização:

"Aquilo que um jovem genial concebeu e executou pode ser imitado sem imodéstia por um homem à beira da velhice, conhecedor do ofício." Estas palavras saíram do prólogo escrito por Jorge Luís Borges a O Informe de Brodie, publicado em 1970 e agora relançado no Brasil, com tradução do escritor, crítico e estudioso da literatura argentina Davi Arrigucci Jr (Companhia das Letras, 96 págs., R$ 27). O "jovem genial" mencionado é o inglês Rudyard Kipling, autor, aos 20 anos, de contos que Borges, aos 71, decidiu "imitar". "Contos breves, escritos de forma direta, que almejam distrair ou comover, e não persuadir". As onze narrativas que compõem O Informe de Brodie são, efetivamente, curtas e diretas. Os enredos se desenvolvem linearmente, a partir de pontos de vista ou explicitados pelo autor ou, no mínimo, logo identificáveis. O tom geral é de conversa com o leitor. Em vários contos, inclusive, Borges é ele próprio. De saída, seria importante dizer que este é, essencialmente, um livro de duelos - quase todas as histórias se articulam em torno do confronto entre dois personagens. Mas também é importante perceber que o livro apresenta características comuns a muito do que Borges escreveu antes. Duas merecem destaque. A primeira é a reelaboração de certa mitologia do passado rural argentino, que atualiza uma forte linhagem literária do país. A maioria dos personagens transita no espaço, entre o campo e a cidade, e também no tempo, entre as últimas décadas do século 19, ou as primeiras do 20, até o momento da narrativa, no qual chegam em geral por intermédio de seus descendentes, ou de seus antigos conhecidos, ou pela fama de seus atos. Tais evocações recuperam um código que valoriza a coragem individual, a masculinidade e a têmpera diante dos golpes do destino. A tensão entre o mundo real e o mundo literário é um segundo elemento característico da obra de Borges a reaparecer. Embora no prólogo ele afirme que estes contos são "realistas", que seguem as "convenções do gênero", logo nos alerta que nada é simples em literatura, e que as histórias são deturpadas pelas versões. Um narrador está sempre sujeito à "tentação literária de acentuar ou acrescentar algum pormenor". No conto História de Rosendo Juárez, o protagonista chega a procurar o escritor para corrigi-lo e dar os motivos reais de ter fugido do duelo. Há ainda duas histórias que Borges admite poderem ser lidas como fantásticas. Em O Encontro, os vaqueiros que decidem duelar por causa do jogo de pôquer pegam emprestado duas facas de uma coleção existente na casa. Anos depois, uma testemunha do duelo descobre que as facas haviam pertencido a arruaceiros famosos, inimigos um do outro, e conclui: "as armas, não os homens, duelaram. Tinham dormido, lado a lado, numa vitrine, até que as mãos as despertaram". A outra história passível de ser lida como fantástica seria Juan Muraña. Também aqui uma faca parece determinar os atos de seu proprietário. Nesses casos, uma leitura realista dos fatos simplesmente parece incapaz de explicá-los. Por fim, ao continuar listando suas escapadas do registro realista, Borges afirma que o conto-título é o mais fantasioso de todos. O texto fala de um bibliófilo que se propõe a traduzir o manuscrito de um missionário escocês chamado David Brodie. Nele, os costumes de um povo primitivo são descritos com fino humor. Mas, ainda que a história se volte contra a sociedade atual, qualquer fachada realista de fato desaba diante dos absurdos relatados pelo escocês. Por fim, vale dimensionar a importância da principal característica deste livro, que é justamente o mencionado caráter direto das narrativas. O aparecimento de temas trabalhados anteriormente, tão ricos e densos, relativiza um pouco essa aparência singela das últimas histórias, mas, se a simplicidade absoluta não existe, digamos então que o invólucro em torno do núcleo irredutível de complexidade foi desbastado ao limite. Não há labirintos ou intrincados jogos de espelhos. E o próprio escritor admite o peso desse fato: "Renunciei às surpresas de um estilo barroco; também às que querem oferecer um final imprevisto. (...) Durante muitos anos acreditei que me seria dado conseguir uma boa página mediante variações e novidades; agora, completados os setenta, creio ter encontrado a minha voz". Rodrigo Lacerda, escritor, é autor de O Fazedor de Velhos

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