Obras para entender Piero della Francesca

Estudo de Roberto Longhi e ensaio de Braudel explicam época do pintor italiano

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Antes de decidir publicar, em 1927, seu histórico ensaio sobre Piero della Francesca, morto no ano do descobrimento da América, o crítico e colecionador italiano Roberto Longhi (1890-1970) era obrigado a ler suspeitas críticas que definiam as poses de estátua e gestos suspensos das figuras do pintor como ''''impassibilidade soberba e hierática''''. Inconsolável miopia. O que era visto como zona plácida em Piero é, na verdade, um mundo fervilhante e microscópico a que têm acesso apenas olhos bem abertos para identificar em suas contraposições cromáticas o anúncio da pintura e do colorismo contemporâneos. Longhi evoca os nomes de Cézanne e Morandi para confirmar sua suspeita de que a arte de Piero foi o marco zero da pintura moderna. Quem tiver dúvidas, pode consultar as fotos publicadas nesta página. Ou o livro de Longhi, Piero della Francesca (Cosac Naify, 464 págs., R$ 99), que acaba de chegar às livrarias na semana de lançamento de O Modelo Italiano (Companhia das Letras, 220 págs. R$ 48), estudo publicado na França após a morte de seu autor, o historiador francês Fernand Braudel (1902-1985). O ensaio cobre justamente o período em que Piero estava ativo (entre 1440 e 1490), chegando a 1650, quando a Itália já não ditava as regras da boa pintura ao mundo. Tanto Longhi como Braudel dispensam apresentações. Basta dizer que poucos autores foram tão influentes dentro e fora da Itália como o primeiro. Braudel é considerado o maior historiador do século 20. Seu livro, de certa forma, complementa o de Longhi. Teria sido interessante saber de Longhi, morto 15 anos antes de Braudel, o que ele acharia da afirmação do francês sobre a invenção da perspectiva linear pelo flamengo Jan Van Eyck (1400-1441) antes da Itália, ele que, orgulhoso, afirmava ser a maior idéia artística do Renascimento italiano justamente a ''''perspectiva''''. Braudel não era do tipo que tivesse lá muitas dúvidas. O primeiro capítulo de seu livro O Modelo Italiano propõe ensinar ao leitor ''''como ver o mundo por volta de 1450, caso se fosse italiano''''. A Itália, na época do Renascimento, afirma Braudel, não era uma luz concentrada sobre um só personagem. Havia uma bipolaridade do Ocidente, dividido entre o sul da Itália e o norte de Flandres. Na época em que Piero começou a pintar, até o cachorrinho do rico comerciante Arnolfini queria ser retratado por Van Eyck em Bruges. Os italianos se mordiam de inveja, a ponto de Michelangelo ranger os dentes quando ouvia falar da pintura de Flandres. Para ele, essa não passava de um conjunto de ''''farrapos e casebres, sem simetria nem proporção''''. Isso ele certamente jamais falaria da pintura de Piero della Francesca. Se dependesse da monografia de Longhi, aliás, pouco se teria a dizer sobre sua vida pessoal. O historiador Carlo Ginzburg, autor da introdução, especialmente escrita para a edição brasileira, destaca a economia com que o crítico fornece informações sobre a pessoa física do pintor, preferindo falar de sua personalidade pictórica e de suas obras - em ordem cronológica e num estilo quase hierático, acrescenta. De fato, o que Longhi propõe é uma leitura radicalmente formalista de Piero della Francesca, bem distante da primeira monografia crítica a ele dedicada por Felix Witting e publicada em 1898 (Longhi a considerava um tanto impressionista e equivocada, em especial quando Witting compara Piero aos flamengos). Longhi era facilmente irritável. Criticava duramente historiadores como o politizado Arnold Hauser (História Social da Arte e da Literatura) por reduzir Piero a um pintor da corte, ironizando o húngaro por causa de sua orientação ideológica. O italiano pergunta o que aconteceria se, em vez de analisar a pintura que retrata o encontro de Salomão com a rainha de Sabá, Hauser tivesse escolhido a Comprovação da Verdadeira Cruz e A Morte de Adão. ''''Certamente ele teria concluído que Piero era um pintor camponês.'''' E, por falar em camponeses, como não ficar convencido de que a garota que posa como a Virgem no afresco Nossa Senhora do Parto (c.1450-55), de Monterchi, é menos isíaca que outras madonas de Piero, uma mulher do campo que posa de lado para que não restem dúvidas quanto à realidade de sua gravidez? Solene como uma princesa, ela não passa de uma rústica montanhesa de rosto de fuinha que surge à porta da carvoaria, segundo Longhi, cuja observação teve ressonância até no cinema (é dele o texto que Alain Delon diz numa cena em que visita o afresco em A Primeira Noite de Tranqüilidade, de Zurlini). Piero, ao contrário de sua camponesa de Monterchi, ficou rico e famoso com sua pintura. Não trocava trabalhos por porcos, como seu discípulo Lorentino, mas por terras. Freqüentava as cortes talianas com a naturalidade com que recebia novos discípulos (Perugino e Signorelli foram seus alunos). Ficou cego no fim da vida, sendo conduzido pelas ruas desertas de San Sepolcro pela mão de rapazotes da localidade, segundo Longhi. Não sobrou um mísero auto-retrato para revelar como era, garante Longhi. Até hoje é um homem sem rosto.

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