Obra poética começa a ser reavaliada

Edição crítica da poesia de Lúcio Cardoso, a cargo do professor Ésio Macedo Ribeiro, será lançada em outubro pela Edusp

PUBLICIDADE

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Na metafísica poética de Lúcio Cardoso, como acentuou outro poeta, José Paulo Paes, a morte não existe. Ou, como diria o próprio, não há sequer um fim. "Morrer é recomeçar/ porque duramos/das infindáveis mortes que recomeçamos." Assim, não causa espanto a ressurreição de Cardoso do mundo das sombras a que foi involuntariamente confinado. Além das montagens teatrais baseadas em seu romance mais famoso, Crônica da Casa Assassinada, o que se anuncia agora é a reavaliação de sua obra poética com a publicação, em outubro, pela Edusp, de Poesia Completa, edição crítica assinada pelo professor Ésio Macedo Ribeiro, autor de uma tese sobre o escritor mineiro publicada há três anos pela Edusp/Nankin, O Riso Escuro ou O Pavão de Luto - Um Percurso pela Poesia de Lúcio Cardoso. É da edição crítica ainda em preparo, com prefácio prometido de João Adolfo Hansen, que foram extraídos os dois poemas inéditos publicados neste página, cedidos pelo professor. Duas características marcam a poesia de Cardoso, segundo observou José Paulo Paes quando a Nova Fronteira lançou, nos anos 1980, alguns poemas inéditos do autor: o hermetismo e a ambiguidade. Não por acaso, Paes comparou-o a dois expoentes do modernismo português, Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). Pessoa escondia-se atrás dos heterônimos e alimentou certo gosto pelas sombras do ocultismo. Sá-Carneiro foi inicialmente seduzido pelo decadentismo e, antecipando-se ao brasileiro, trabalhou em seus escritos sobre dois temas dos quais Cardoso tratou obsessivamente: o amor interdito e a loucura. E mais: entre os dois estabelece-se uma certa cumplicidade formal em que não falta a figura do anacoluto e sobram elipses. Para o professor Ésio Macedo Ribeiro, mineiro, como Cardoso, a temática da noite, do escuro, ganha uma dimensão metafórica na elíptica escritura poética do autor. Numa primeira fase, seus poemas são longos, verborrágicos, segundo o estudioso. Num segundo momento, de maturidade, esses poemas se tornam mais curtos e reveladores. Revelações íntimas sobre o autor, camufladas nos romances - a homossexualidade de Timóteo em Crônica da Casa Assassinada, por exemplo -, surgem espontâneas em poemas como Receita de Homem (de 1955), publicado nesta página. Cardoso só conservou certo pudor ao falar da família. Ainda assim, segundo Macedo Ribeiro, ele escreveu Dias Perdidos, de acentuada nostalgia proustiana, para a mãe. O escritor podia conciliar seu catolicismo com certas infrações morais, mas reservou para seus romances o inventário rigoroso da família mineira. Ainda assim, o fez sob pressão. Conta-se que contratou um assassino para o perseguir, quando escrevia Crônica da Casa Assassinada, apenas para encontrar o tom soturno de um livro à beira do sufoco, em que o núcleo familiar asfixia seus integrantes que tentam respirar fora dele. O assassino representava, então, a materialização dessa força destruidora, um inimigo que vinha do mundo metafísico para ameaçá-lo, cruzando literatura e realidade. Quando lhe perguntavam se achava ter assim realizado sua obra, a resposta imediata não era sobre ela, mas sobre ele. "Minha obra, não sei, mas a mim mesmo tenho realizado com certa febre", dizia. "Sempre imaginei, por um ruidoso excesso de imaginação, que posso fazer de tudo, o que equivale a dizer que imagino não ter feito quase nada." E, por ser tão eclético, experimentou dirigir um filme há 60 anos, A Mulher de Longe, até admitir o fracasso como cineasta em seu diário, logo ele, um cinéfilo talhado para ser o profeta do Cinema Novo e anunciar, já em 1949, uma nova estética com a qual tentaria superar a vanguarda de Mário Peixoto. O filme foi esquecido e mesmo Crônica da Casa Assassinada, depois filmado (em 1971) por Paulo César Saraceni com trilha (inesquecível) de Tom Jobim, não fez justiça ao romance. Lúcio Cardoso não deu muita sorte no cinema. Na pintura não foi diferente. O derrame cerebral que paralisou um dos lados do seu corpo, em 1962, levou-o de volta às telas. Seu esforço foi igualmente inútil. Nunca foi reconhecido como grande pintor e nenhuma de suas quatro exposições teve grande repercussão. Na última, póstuma, realizada há 20 anos na Torre Eiffel, em Paris, dedicada a artistas deficientes, sete de suas telas desapareceram, assim como a curadora francesa que levou as pinturas para seu país, segundo o professor Ésio Macedo. Em certo sentido, a expressionista pintura de Cardoso o levou de volta aos anos 1940, quando escreveu Dias Perdidos. É um livro atípico em sua obra, um romance quase pictórico em que não há quase ação, forçada pela descrição da atmosfera oclusiva de uma relação conjugal condenada ao fiasco. Nela, Sílvio, o principal personagem, tenta escapar da solidão ao lado de uma jovem leviana, sabendo de antemão que seu esforço resultará inútil. Parafraseando Oscar Wilde, o escritor brasileiro fala, por meio de uma de suas criações, que "somos tão cegos e insensatos que destruímos aqueles que nos são mais caros, os seres que mais amamos". Essa cegueira o fez comparar o principal personagem, condenado à traição, a um "criminoso matando no escuro", metáfora poderosa que atravessa o território literário para chegar à pintura, derrubando fronteiras. Foi esse, aliás, seu principal desafio: tornar visível na literatura, à maneira de Paul Klee na tela, o que era invisível. Poemas Inéditos INUTILIDADE DA POESIA O que adianta dormir? se a canção continua, mais pura, mais límpida, entrando para a alma. O que adianta descansar? se o ritmo faz o corpo dobrar-se, dançar e pular num desespero louco. O que adianta sorrir? se as lágrimas continuam aflorando os olhos, como beijos em lábios inocentes. O que adianta a poesia? se os homens ainda gritam, ainda odeiam, ainda morrem. O que adianta? RECEITA DE HOMEM Depois deve ser alto, sem lembrar o frio estilo da palmeira. Moreno sem excesso para que se encontre tons de sol de agosto em seus cabelos. E nem louro demais para que, de repente no olhar cintile algo da cigana pátria adormecida. E que tenha mãos grandes, para demorados carinhos e adeuses que se retardem ao peso do próprio gesto. Pés grandes, também, porque não, para que os regressos sejam breves e haja resistência para as conjuntas caminhadas. Os olhos falem, falem sempre, falem de amor, de ciúme, de morte ou traição. Mas que falem. Porque o homem sem a música dos olhos é como sepultura exposta ao sol do meio-dia. E que o riso relembre um pouco da infância, para que se tenha, no fervor do beijo, uma memória de pitanga e amora esmagadas Ah, o corpo! Sucedam alvoradas ao longo do tórax gentil, e escureça a penugem até o sexo velado. (Mas não definitivamente.) E o seu passo lembre a dança, mas com firmeza, e o seu rastro fale de perfume, sem perfume e escorram pausados rios em seus flancos hieráticos. E que ele cante, sem cantar por toda a sua humana contextura, para que também em torno dele as coisas cantem, quando, como o primeiro homem, nu ele se erguer defronte ao mar. Canto do Rio, 3/XII/55 Os principais livros MALEITA: Primeiro livro do autor, publicado em 1934, ainda escrito sob o impacto do advento do Romance de 30 (A Bagaceira, de José Américo de Almeida, e outros). Esse texto regionalista relata a história de um homem que, enviado a uma pequena cidade mineira para promover seu desenvolvimento, topa com a promiscuidade e a desconfiança de seus habitantes. Às margens do Rio São Francisco, o desbravador (baseado na figura do pai do escritor, Joaquim) enfrenta uma epidemia de malária, trazia por um forasteiro a esse lugar quase bárbaro, resistente ao apelo civilizatório. Nesse romance, francamente marcado pelas preocupações sociais do jovem escritor mineiro, ainda não é possível identificar o estilo sombrio das outras obras de Cardoso, mas é clara sua vocação poética. SALGUEIRO: O segundo romance (1935), inspirado no morro carioca, revela traços do estilo introspectivo do autor. Cardoso relata a vida de três gerações (avô, pai e filho) na favela carioca. A LUZ NO SUBSOLO: Romance de 1936, o livro marca sua virada literária. Aqui, ele troca o realismo pela instrospecção psicológica que influenciaria o estilo literário de sua amiga Clarice Lispector. No romance, a chegada de uma nova empregada à casa de um casal burguês provoca alterações profundas no cotidiano de ambos. A empregada, Emanuela, é disputada pelo patrão e seu cunhado. É possível identificar aqui e ali reminiscências das leituras dos clássicos franceses, especialmente Balzac. Ao contrário de Nelson Rodrigues, não lhe interessava discutir a moral burguesa, mas os conflitos que se passam no subterrâneo, no porão da consciência humana, onde as trevas impedem a entrada da luz regeneradora. Uma discussão algo jansenista sobre a origem do mal entra sorrateiramente, revelando a influência de Julien Green. MÃOS VAZIAS: Reeditado pela Civilização Brasileira junto a O Desconhecido (1940), Mãos Vazias (1938) é uma reflexão pessimista sobre o preço da liberdade. Trata de uma mulher que, após a morte do filho, passa a desafiar as regras da pequena cidade interiorana em que vive, enfrentando uma nova tragédia. O DESCONHECIDO: Novamente, a temática do ser que chega de um lugar ignorado para mudar a vida dos outros, como em A Luz do Subsolo. Aqui, trata-se de um forasteiro que se emprega numa fazenda falida, desestabilizando a vida de seus habitantes. Antecipando a discussão sobre sanidade e loucura que seria tratada em seu livro mais conhecido, Crônica da Casa Assassinada, é um exemplo do estilo sombrio que levou alguns críticos a classificá-lo de gótico. INÁCIO, O ENFEITIÇADO E BALTAZAR: A Trilogia do Mundo sem Deus, formada por esses livros (reeditados em 2002 num único volume), é uma reflexão filosófica sobre o desamparo do homem moderno. CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA: A estrutura do melhor romance de Lúcio Cardoso deve algo ao clássico experimental de Gide, Os Moedeiros Falsos (1925), uma vez que utiliza fragmentos de diários e cartas, como o autor francês, para contar a vida de uma família mineira encerrada numa fazenda tão arruinada quanto seus habitantes. Entre os dilacerados membros dessa família incestuosa e marcada pela loucura destaca-se o personagem de Timóteo, que se julga tomado pelo espírito de uma antepassada da família - e que por isso se veste de mulher, maneira de mostrar como a homossexualidade é camuflada como demência na sociedade mineira. No entanto, quem domina a cena é Nina, mulher que desafia as regras morais da família e mantém uma relação incestuosa com o filho.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.