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''Obama pode mediar nossa crise''

Para David Grossman, a origem multiétnica do presidente americano o credencia a trabalhar pela paz no Oriente Médio

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Ao lançar A Mulher Foge no ano passado, em Israel, David Grossman evitou entrevistas e badalações - a dor pela perda do filho, Uri, continuava insuperável. O homem que já foi chamado de "a consciência moral de Israel" preferia o silêncio. Com o livro chegando a outros países, porém, Grossman retomou seu papel, participando de lançamentos. Afinal, A Mulher Foge imortaliza experiências de Uri, que contava ao pai histórias de sua rotina no Exército. O livro acompanha o percurso de dois homens, uma mulher e os dois filhos dela. Orah abandona a própria casa a fim de evitar a angustiante espera pela volta do filho que, militar, participa de uma importante operação. Ao viajar para a Galileia, ela reencontra Avram, namorado de infância. Juntos, perambulam a pé por Israel, enquanto ela, a fim de manter viva a memória do filho, relembra sua trajetória pessoal. "Não se trata da história de uma perda, mas sobre a vida e suas diversas facetas, sobre a manutenção e também a reconstituição de uma família", conta Grossman. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de revelar a vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, a incansável resistência do povo israelense, cujos projetos de vida normalmente não têm grande extensão - enquanto outros países planejam o futuro com décadas de avanço, Israel (assim como seus vizinhos) preocupam-se basicamente em garantir a existência. A literatura, portanto, desponta como um refúgio. É pela escrita, acredita ele, que o inimigo pode ser entendido por inteiro, com defeitos e também qualidades. O assunto foi tratado na seguinte entrevista. Em quais aspectos esse livro é distinto dos anteriores? Não sei se consigo dizer. Talvez mais seja esse o romance mais compreensível que escrevi. Tentei combinar histórias familiares, algo muito pessoal, com uma conjuntura mais ampla, envolvendo uma guerra. Claro que busquei isso em outros livros, mas, nesse caso específico, ficou mais evidente que a realidade exterior penetra de forma violenta na intimidade. Em alguns momentos, o livro transparece um pessimismo. Como quando Orah diz sobre Israel: "Sei que este país não tem chance alguma". É um reflexo de seus sentimentos? A maioria dos israelenses têm esse temor, que domina nossos desejos. O resultado é que o otimismo é sugado por esse receio, que também condiciona nossa posição sociopolítica. Somos um país pequeno, com seis milhões de habitantes, provavelmente um terço da população da cidade de São Paulo. E vivemos em um território violento, com poucas perspectivas de paz com nossos vizinhos. Ao mesmo tempo, Israel é um país de contradições, pois, apesar dessa situação, há uma vitalidade evidente, uma vibração intelectual, espiritual, cultural que contagia a cidade. Mesmo em meu livro, que trata de um perigo constante e iminente, há também a descrição da rotina vibrante dos habitantes, como a disposição de Orah em trazer Avram para a vida. Essa descombinação é constante. Como a literatura se encaixa em uma sociedade oprimida pela guerra e pelo terror? Em situações de guerra, é normal um certo encolhimento das pessoas, seja mental ou social. A prioridade é se proteger contra tudo. Com isso, o contato com a realidade é minimizado, uma consequência sofrida. Já a literatura aponta para outra direção: ao escrever, o autor se expõe. É possível fazer o que bem entende, até olhar a si mesmo sob o ponto de vista do inimigo. A ponto de, quando percebem que encerrei mais um livro, algumas pessoas perguntam se terminei a escrita fortalecido. Respondo que não é essa a minha intenção: prefiro terminar mais exposto. Não me preocupo em me proteger - de uma forma estranha, a escrita exerce uma função de sobrevivência para mim. Quanto mais me desnudo literariamente, mais acredito ter chance de me salvar, de encontrar alguma solução para os meus problemas. Sua experiência no Exército foi útil na escrita dessa história? Realmente, passei quatro anos no Exército, mas a maioria dos israelenses faz isso. Acredito que isso me ajudou a entender a realidade: de jovem protegido pela família, transformei-me em um soldado envolvido pela catástrofe da guerra, que torna qualquer ser humano vulnerável. Aproveitei ainda as histórias vividas por meus dois filhos, que também serviram o Exército e me auxiliaram a dar uma veracidade à trama. Certa vez, você disse que tudo o que escreve é autobiográfico. Um de seus filhos, Uri, foi morto durante a guerra, em 2006, quando você escrevia esse romance. Assim, seria esse livro de alguma forma autobiográfico? De fato, tudo que escrevo carrega um pouco da minha existência. Comecei a rascunhar A Mulher Foge três anos e três meses antes de Uri ser morto no Líbano. Fiquei desnorteado e me perdi no medo que domina a sociedade israelense. Eu temia não conseguir escapar desse medo. Quando iniciei a escrita, ele ainda não estava no Exército e minha expectativa era de estar ao seu lado, descrevendo a realidade que o cercava. Depois de sua morte, percebi que deveria continuar com o trabalho pois essa é a forma de justificar minha existência, de encarar meu destino, especialmente aquele que não escolhi. E de ser hábil o suficiente para descobrir o local onde eu possa criar algo. Com isso, percebi que deveria valorizar a vida e descobrir seu significado. Você alterou o manuscrito depois da morte de Uri? Não muito porque a trama já estava formulada. Quem mudou foi o escritor, não a história. Quando escrevo, sempre procuro ser leal aos ideais mais secretos do protagonista em função da realidade do romance. Aconteça o que acontecer, luto para manter a fidelidade ao desenvolvimento da história, aos personagens. Claro que, ao ler essa história, qualquer um vai notar traços do que aconteceu comigo,mas se trata de uma obra de ficção, embora também obra do coração. Em seus pronunciamentos políticos, você sempre afirma que, para se entender o conflito entre israelenses e palestinos, é necessário descobrir o ponto de vista emocional de cada um dos lados. Sim, infelizmente conheço muitos fanáticos, que não admitem conviver com o outro. É preciso que se entenda que o conflito não se trata de um jogo de futebol, pois, nesse caso, devemos torcer pelos dois times. É essa confiança que deposito no presidente americano Barack Obama. A partir de sua biografia, de suas origens baseadas em diferentes culturas, é possível acreditar que ele tem a necessária visão multifocada da realidade, diferentemente de seu antecessor, George W. Bush, que via apenas um dos lados, permitindo o acirramento da rivalidade. Tenho amigos israelenses que se preocupam com simpatia explícita de Obama pelos palestinos e entendo isso. Mas espero por uma atenção consciente e equilibrada do presidente americano, sem pesar para nenhum dos lados mas focada na solução para o problema.

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