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O western apocalíptico de McCarthy

Livro que inspirou filme Onde os Fracos Não Têm Vez, dos irmãos Coen, opõe morais para falar de espécie em extinção

Por Yara Frateschi Vieira
Atualização:

O título do romance Onde os Velhos Não Têm Vez (tradução de Adriana Lisboa para No Country for Old Men lançada no Brasil pela Alfaguara, 256 págs., R$ 38,90), de Cormac McCarthy, retoma o primeiro verso do poema de W.B. Yeats, Sailing to Bizantium (1928), no qual se opõe o inevitável envelhecimento e a morte de tudo que vive aos monumentos imperecíveis da arte e do intelecto. O título coloca, portanto, de imediato, a questão de saber se vamos ler um livro sobre a discriminação contra os velhos ou se a escolha do verso de Yeats implicaria também uma leitura estetizante de McCarthy, aludindo à sobrevivência do espírito, através da arte. Como em outros romances do mesmo autor, a ação passa-se no sul dos Estados Unidos, nas regiões fronteiriças com o México. A época é 1980, e a população que aí se encontra é de americanos brancos das pequenas cidades, cuja cultura é marcada pelo estereótipo do ''''redneck'''' (classe média baixa, de origens rurais, pouca escolaridade, conservadora, falante de um inglês não-padrão e discriminado); há ainda mexicanos, poucos, em geral os envolvidos no tráfico de drogas na fronteira. A história é quase banal nos dias que correm: um caçador encontra por acaso no deserto o cenário de uma entrega de drogas que saiu mal: corpos assassinados, um carregamento de heroína e uma mala com mais de US$ 2 milhões. Naturalmente, apossa-se do dinheiro e foge, tornando-se a partir de então o alvo da busca implacável das duas facções envolvidas na negociação, bem como do xerife local, que quer protegê-lo. A história, que chegou ao cinema pelas mãos dos irmãos Coen como Onde os Fracos Não Têm Vez, em cartaz nos cinemas brasileiros, é contada em terceira pessoa, numa linguagem enxuta, bastante cinematográfica: frases curtas, estruturas paratáticas. Os diálogos, rápidos, reproduzem a prática discursiva econômica que vai direto ao ponto - como num tiroteio. É só através deles, porém, que temos acesso a algo como a interioridade ou às características pessoais das personagens. O bandido Chigurh destaca-se nesse particular: embora também dado a diálogos minimalistas, não resiste contudo a algumas tiradas de tipo ''''filosofante'''' - e é curioso observar que nem a sua origem misteriosamente mestiça (não é mexicano, mas o seu nome é Anton; tem cabelos escuros, mas olhos azuis), nem a sua profissão de ''''matador'''' impedem que o seu inglês seja culto, num contexto de falantes que usam a variante não-padrão. É também, em aparente contradição, o único, além do xerife, que revela um ''''código moral'''' inabalável - já veremos que isso tem importância para a compreensão do universo em que se move a obra. A personagem sobre quem mais sabemos, porém, é o xerife Ed Tom Bell. Do seu ponto de vista, e na sua voz, o livro oferece 13 capítulos, que se destacam por serem os únicos numerados, estarem em itálico e constituírem uma espécie de ''''confissões'''' do xerife. É ele quem interpreta os acontecimentos: homem já maduro - foi herói da 2ª Guerra, passou pela Guerra do Vietnã e ainda pode relembrar com o tio, já bastante velho, o irmão deste que morrera na 1ª Guerra (as guerras são um tema constante no seu texto) -, guarda a memória, não só do seu passado familiar, mas também a do lugar e a do país e submete o passado e o presente a uma constante análise e avaliação, segundo valores que podem caber no estereótipo redneck. O que o salva disso, porém, é o empenho vital com que a sua consciência moral inflexível o faz examinar e julgar não só o que ocorre à sua volta, mas também em si mesmo. Ao reconhecer a própria derrota diante das circunstâncias com que se defronta, mas sem poder aceitar ter sido incapaz de defender aqueles cujos votos o colocaram na posição que ocupa, demite-se do cargo. O discurso de Bell deixa à tona a sua formação: ao passar pelo deserto onde foram abandonados os caminhões com a droga e os homens assassinados, é do seu monólogo interior que parte a frase: ''''Vive em silêncio o deus que esfregou a terra a seguir com sal e cinza'''', remetendo-nos a passagens bíblicas referentes à destruição de Sodoma e Gomorra. As suas recentes experiências como xerife o levam a suspeitar que o mal que vemos agora é de uma qualidade inaudita, como se esses homens fossem de uma ''''nova espécie''''. Encontra seu protótipo em Chigurh, que todos vêem como um psicopata assassino, mas que Bell intui ser algo muito mais sério, participando de uma natureza outra: ''''Em algum lugar lá fora tem um verdadeiro e vivo profeta da destruição e não quero confrontá-lo''''. A descrição de Chigurh, por sua vez, feita na voz do narrador, confirma-nos que se trata de alguém cujos parâmetros e constituição não são os dos homens em geral. Ele mesmo declara que mesmo um não crente pode achar útil modelar-se à imagem de Deus. Para Bell, afinal, Chigurh é a própria encarnação de Mammon, entendido enquanto o Mal absoluto, a oposição radical a Deus, de tal forma que acaba por se assemelhar mais a ele que aos homens. Desiludido e desencantado consigo mesmo e com o que observa neste mundo que não mais reconhece, Bell sabe que nada, senão a segunda vinda de Cristo, pode impedir o que está para vir - e se quisermos, podemos aqui voltar ao título do livro e aos ecos que nele teria deixado Yeats. Está claro que McCarthy não nos oferece a consolação de uma eternidade do espírito e da arte, para compensar o envelhecimento do corpo. Portanto, não é esse o alcance do verso que escolheu para título. Mas é num outro poema do poeta irlandês, escrito em 1919, que reencontramos o tom profético e apocalíptico mais próximo ao mundo de McCarthy: trata-se do poema intitulado exatamente Second Coming, cuja última estrofe descreve a segunda vinda, não do Messias, mas sim a de um monstro saído das areias do deserto, com o corpo de leão e cabeça de homem, ''''um olhar vazio e impiedoso como o sol'''', uma rude besta que se arrasta para nascer em Belém. É a esse mundo apocalíptico, num deserto no qual nascerá (ou já nasceu) a ''''nova besta'''' que se opõem os velhos que ainda habitam o país, sobreviventes de uma espécie em extinção. No livro seguinte do autor (A Estrada, 2007), a catástrofe total transformará em realidade aquilo que apenas se anuncia neste. Yara Frateschi Vieira é professora do departamento de Letras da Unicamp, autora de Poesia Medieval e Estética Medieval

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