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O voo de Kafka

Estado publica primeira tradução no Brasil, direta do idioma original, de relato centenário do checo sobre competição aeronáutica italiana

Por Samuel Titan Jr.
Atualização:

Em meados de 1909, após poucos meses de atuação no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho, em Praga, o jovem advogado Franz Kafka (1883-1924) solicitou um breve período de férias, alegando estafa, insônia e problemas digestivos. Preferiu não mencionar o desgosto que lhe causava o ponto morto em que se encontravam suas outras ambições. Sentia-se votado à literatura; já publicara alguns contos na importante revista Hyperion, além de uma resenha em Der neue Weg; mas agora temia que a veia ficcional tivesse secado. É nessa altura que os irmãos Max e Otto Brod sugerem-lhe uma escapada rumo a Riva, balneário italiano ainda em território austro-húngaro. Os planos vingam e os três partem rumo ao sul nos primeiros dias de setembro de 1909. Em Riva, entre passeios, banhos e leituras, ficam sabendo de uma iminente competição aeronáutica em Brescia, na qual tomaria parte ninguém menos que Louis Blériot, o herói da primeira travessia aérea do Canal da Mancha, em 25 de julho daquele ano. Decidem assistir ao circuito, mas Max propõe ainda um desafio, a fim de sacudir os brios literários do amigo: ele e Kafka escreverão suas versões pessoais e concorrentes da competição, para depois publicá-las na imprensa de língua alemã. Nascem assim Os Aeroplanos em Brescia, artigo em que Kafka relata o que viu no aeródromo da cidade italiana no dia 11 de setembro de 1909. O artigo saiu (com alguns cortes do editor, mais tarde aprovados pelo autor) no número de 29 de setembro de 1909 de Bohemia, jornal liberal de Praga. A tradução a seguir, a primeira no Brasil, segue o texto estabelecido pela edição crítica da S. Fischer Verlag. Kafka jamais o incluiu nos magros volumes que publicou em vida. Devia saber o que fazia - e contudo, cem anos depois, Os Aeroplanos em Brescia ainda merecem a atenção do leitor. Seja por uma comicidade folhetinesca, dickensiana, que o escritor jamais abandonou por inteiro, seja por prenunciarem, esparsa mas nitidamente, o que estava por vir - e que se nota no humor seco de certas construções sintáticas, no gosto por representar ações sem fim discernível ou ainda no tom geral de rebaixamento paródico e anti-heroico que domina o relato.

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