O universo instável de Belmonte

Meu Mundo em Perigo, terceiro longa do cineasta brasiliense, causa reações divididas no público do cine Brasília

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Talvez não tenha sido a consagração anunciada. Afinal, Meu Mundo em Perigo, apesar de rodado em São Paulo, era ''''o filme da cidade'''', pois o diretor José Eduardo Belmonte criou-se em Brasília (apesar de nascido no interior de São Paulo), aqui trabalhou até há pouco e rodou seus primeiros filmes. Mesmo assim, houve certa divisão no público do Cine Brasília - aplausos para cá, um pouco de vaias ao fundo, para lá. Reação talvez previsível se alguém conhecesse o filme de antemão porque Meu Mundo em Perigo pode ser tudo, menos de assimilação fácil, ou passiva, pelo público. É até mesmo possível que uma catarse final trouxesse a platéia para o seu lado, mas Belmonte, radical, não conduz seus personagens a soluções fáceis. Aliás, não existem soluções fáceis, parece dizer o filme. Talvez nem mesmo existam soluções, fáceis ou difíceis, nesse imbróglio familiar desdobrado em duas frentes. Porque, sim, Meu Mundo em Perigo segue aquela estrutura em que dois grupos de personagens se cruzam a partir de um incidente. Ou melhor, um acidente, e de trânsito. A partir do momento em que o velho autoritário interpretado por Wolney de Assis é atropelado pelo carro dirigido por um homem em desespero, essas duas unidades ficcionais entram, elas também, em rota de colisão. Nas histórias, temos, de um lado como de outro, famílias disfuncionais. Um casal se separa e quem vai ficar com o filho? Ela é desequilibrada e esteve internada. Ele, Elias (Eucir de Souza), não parece muito melhor. A mulher ganha a parada e o homem pira de vez. Sem rumo, conhece uma moça encantadora (Rosane Mulholland, um avião), mas que parece ter perdido o dom da fala. Do outro lado, o autoritário personagem de Wolney de Assis atormenta o filho, Fito (Milhem Cortaz, de Tropa de Elite) e dá em cima da mulher deste. Não parece haver muito espaço para redenção no universo familiar descrito por Belmonte. Esse huis clos existencial está nem tanto nas histórias cruzadas, mas na linguagem adotada para colocá-las na tela. E então aparece a inventividade radical de Belmonte. No ritmo, no corte, nos movimentos de câmera que passeiam pelas ruas de São Paulo, no uso de uma trilha sonora tão obsessiva quanto impactante - tudo isso se põe a serviço da idéia do desequilíbrio dos relacionamentos. Desequilíbrio em geral. É uma marca autoral que retorna e já se desenhara em seus dois primeiros longas-metragens, Subterrâneos (2003) e A Concepção (2005). Cinema, aqui, é corpo-a-corpo com o real, não uma descrição bonitinha e distanciada. Por isso, talvez, incomode tanto. Porque é um cinema que fala de nós e daquilo que não queremos saber. Na entrevista, Belmonte diz que, na primeira concepção do projeto, esperava fazer um melodrama. Mas, o próprio desenvolvimento, o encaminhou em outra direção. ''''Descobri, no processo, que havia mesmo uma tragédia e não um melodrama'''', disse. Sobre seu trabalho radical com a linguagem do cinema, disse que o trabalho de câmera decorre dos atores. ''''Senti que tudo vinha do rosto dos atores, tinha de me colar a eles e acompanhá-los, tudo vem daí.'''' Na equação de Meu Mundo em Perigo, há de um lado um mundo hostil, o da rua. E de outro, outro mundo igualmente hostil, no qual as pessoas ingenuamente tentam se proteger do primeiro, o mundo da família. Espremido entre os dois, o ser humano não tem qualquer chance de ser feliz. Ou de atingir um grau mínimo de serenidade. Na saída do cinema, havia gente decepcionada, dizendo que tinha torcido desesperadamente por um final feliz para o personagem Elias ''''que havia sofrido tanto durante a história''''. Mas, dados os pressupostos lançados por Belmonte seria complicado esperar por alguma redenção. Esta destruiria a lógica interna desse belo e dilacerado filme.

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