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O teatro retorcido de Eisner é pura iluminação

Gestual cênico e balés de frustrações dão sangue aos personagens de A Força da Vida, obra-prima do autor que chega ao Brasil 20 anos após seu lançamento

Por Jotabê Medeiros
Atualização:

O quadrinista norte-americano Will Eisner, fundamental artista dos comics em qualquer época ou lugar, viveu os últimos 15 anos de sua vida numa tranqüila casa campestre em Tamarac, Flórida. Uma daquelas vilas em que as casas se conectam no portão do quintal dos fundos a um campo de golfe, um refúgio magnífico no qual ele e a mulher, Ann Weingarten Eisner, davam lá suas tacadas. Curioso: apesar desse distanciamento ensolarado, esse exílio voluntário, não há a menor evidência, na obra de Eisner, que um dia ele tenha se esquecido um instante sequer de um determinado período sombrio da sua vida em Nova York, no rastro da Grande Depressão, entre os anos 1930 e 1940. É essa cidade, seus bueiros, escadas de emergência, galpões, edifícios e habitantes que ele elegeu como a espinha dorsal de todo seu trabalho, como nesse álbum que é agora publicado pela Devir Editora, A Força da Vida (A Life Force), lançado originalmente em 1988. Tinham então se passado 10 anos desde que ele iniciou sua revolução gráfica com Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço. Em A Força da Vida, Eisner contrapõe, em situações que se cruzam e se superpõem, pessoas extremamente duras e outras líricas, pessoas secas e cínicas e outras ingênuas, em movimentos de esperança e ganância, paixão e desencontro, tragédia e vibração. Quase sempre, o mediador de tudo é a miséria, a carência, a falta de perspectiva. A Força da Vida é um dos trabalhos em que Eisner desenvolve de forma mais intensa a expressividade dos rostos e dos gestos em seus personagens. Claro, tudo com sua marca particular, como o balé que ele cria para um início de enfarte do personagem central Jacob, num beco sujo, ou para o atentado à serraria e a luta entre o bandido e o desmemoriado Tio Max. Tudo emoldurado por um jogo de luz e sombras, de iluminação, que privilegia o sentimento, a emoção. Eisner parecia também remeter-se nesse trabalho a algumas influências mais evidentes, como Franz Kafka e sua A Metamorfose, na insistência dos diálogos de Jacob com uma barata, e na reincidência da passagem do inseto pelos desvãos da trama. É irrepreensível o teatro de desamparo da dona de casa Rifka, quando descobre que está sendo trocada por outra mulher já no crepúsculo da vida. ''Um dia, eu estava conversando com ele e ele me disse: ''Todo mundo acha que eu sou cinematográfico, mas quando faço meus quadrinhos eu penso mais em teatro'''', conta o ensaísta e jornalista brasileiro Álvaro de Moya, que foi grande amigo de Will Eisner. ''Acontece que o pai dele era cenógrafo, pintava painéis de fundo para montagens de teatro. É por isso que os quadrinhos dele às vezes sugerem uma cena em um palco italiano, iluminado por uma luz vertical'', diz o especialista. ''Os alemães chamam a isso de gestalt, o gestual do teatro, aquela expressão corporal que se dá aos personagens. Isso era muito ressaltado no trabalho do Eisner, cujos personagens são retorcidos, não são retos. Passados tantos anos, a gente olha o trabalho dele e não pára de se surpreender'', avalia Moya. A Força da Vida tem personagens de meia-idade vivendo crises de identidade em plena recessão, procurando saber em que ponto da vida perderam o fio da meada. Há também jovens ambiciosos, querendo encontrar uma forma de se estabelecer, ganhar respeitabilidade e fama. Há larápios e oportunistas, reacionários e comunistas, todos envolvidos numa trama que não os julga, não os trai, e tampouco os exime de responsabilidades. ''O que Deus quer de mim?'', pergunta a judia alemã Frieda a Jacob, seu sexagenário pretendente. Ele responde: ''Quem sabe? Desde o princípio, padres, rabinos, gurus ou vigaristas, todos montam um negócio para tentar entender isso! Eles escrevem livros e bíblias. Nos fazem rezar na esperança de, talvez, conseguir uma humilde resposta que lhes permita chegar a uma nítida compreensão. E, enquanto isso, homem e barata simplesmente vivem o dia-a-dia'', responde Jacob. Will Eisner criou o conceito de romance em quadrinhos (graphic novel). Ao morrer, em 2005, era difícil um desenhista, ilustrador ou cartunista ao redor do mundo que não quisesse falar de sua influência. Apesar de ter se tornado célebre como o cronista de uma América de cortiços, hidrantes, vagabundos, becos, escadas de emergência, prostitutas e cantores de rua, era pessoalmente um homem doce e solícito, que não se negava a conversar com os discípulos em qualquer circunstância. Neil Gaiman, um dos seus muitos admiradores, disse que ''a vitalidade contínua de Eisner como um artista'' desafiava ''a lógica, o senso, o tempo, a história e todos os jovens cartunistas de hoje''. Para Alan Moore, ele foi o ''Leonardo da Vinci'' dos comics. ''Ele ainda é melhor que todos nós'', disse Frank Miller. ''Não há ninguém mais completo do que Will Eisner. Nunca houve, e eu, em meus dias mais pessimistas, tenho dúvidas se algum dia haverá'', disse o inglês Alan Moore, de Watchmen. Eisner, que foi sempre de uma modéstia absoluta, dizia que só tinha intenção de ilustrar a condição humana. ''Para mim, super-heróis são personagens unidimensionais. O principal subtexto de uma história, qualquer história, é a possibilidade da falha, da mortalidade, do erro.''

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