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O teatro nos anos acabados em oito

Há vários marcos comemorativos fincados na coincidência cronológica

Por Mariangela Alves de Lima
Atualização:

Fica para os hermeneutas a explicação, mas o fato é que o teatro paulista tem uma espécie de fatalismo relacionado aos anos cujo final é o número oito. Há vários marcos comemorativos fincados no percurso cronológico do nosso desenvolvimento teatral, a começar pelo primeiro conjunto teatral estável, o Teatro Brasileiro de Comédia, fundado em 1948. Mas talvez sejam mais raras na cultura brasileira as celebrações da continuidade. Neste ano que agora termina, antes que se esfume o efeito misterioso do número, é bom ter o prazer de relembrar as coisas importantes que perduram até superar a função de marcos sinalizadores de rupturas ou saltos qualitativos. Ainda que absorvida pela Universidade de São Paulo, a Escola de Arte Dramática guarda a memória da escola de formação de intérpretes fundada por Alfredo Mesquita em 1948. Fez 60 anos e não parece encanecida porque dela têm saído jovens intérpretes para os experimentos mais atrevidos da cena paulista e é também à formação a um só tempo rigorosa na prática e insistente na teoria que muitos atores hoje veteranos da TV e do cinema funcionam como vigas mestras. Em permanente estado de insurgência estética e política, oxigenado pela renovação constante da equipe de criadores atraída pelo vitalismo e pela beleza dos espetáculos, o Teatro Oficina de São Paulo tem hoje na sua direção um único participante do grupo original, mas o poder de agregar está intacto. Em 1958 José Celso e um grupo de estudantes universitários que mais tarde se espraiaria por outros conjuntos teatrais consideravam-se uma equipe engajada nas lutas reais do nosso tempo. Mudaram certamente as formas de luta e a realidade, mas a perspectiva coletivista implícita na poética dos jovens de há meio século é ainda o mote do diretor e o coração dos espetáculos. O Oficina completa sua 50ª década esperneando contra os paladinos de shoppings que pretendem enclausurar sua casa, ocultando não apenas um cenário, mas o significado político de ágora, que fundamenta tanto o partido arquitetônico quanto a vocação estética de um teatro que não cessa de interrogar. Foi também em um ano assinalado por esse número propício que o diretor Antunes Filho concebeu um espetáculo que, de certo modo, encerrava sua carreira do encenador do teatro moderno brasileiro e inaugurava outro modo de produção adequado ao projeto artístico diferente do modelo proposto pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Macunaíma, espetáculo que estreou em 1978, é resultado de um estudo crítico acurado do ideário modernista. Antunes Filho presidiu um processo de criação que engajava intérpretes jovens e inexperientes na criação de um espetáculo a partir do estudo da cultura brasileira, de teorias dos processos ficcionais e de novas técnicas adequadas para formalizações apoiadas unicamente no desempenho em cena. O ineditismo dessa proposta corporificou-se em um espetáculo extraordinário pela sua aparente imaterialidade e pela capacidade de transfigurar o signo literário a partir da invenção do intérprete. Essa potência revelada por esse processo sugeriu a formação do Centro de Pesquisa Teatral que, apoiado pelo SESC, completou este ano três décadas de pesquisa de em todas as áreas de criação do espetáculo, começando pela formação de intérpretes. Alguns dos acontecimentos mais importantes da arte cênica nacional e internacional destes últimos trinta anos foram produzidos pelo CPT com o rigor técnico e a lentidão reflexiva necessários para a gestação do novo. Tampouco é efeméride o merecido brinde que, em pensamento, os estudiosos do teatro e das outras linguagens artísticas fazem à revista Folhetim. Iniciativa de um grupo estável carioca, o Teatro do Pequeno Gesto, a revista lançou seu número zero em janeiro de 1998 com um perfil editorial sóbrio e muito bem pensado e, pelo menos quanto a isto, não precisou mudar durante os dez anos seguintes. Custa pouco, conta com amigos incertos nos apertos financeiros frequentes para todos os editores de cultura e talvez porque não tenha a ilusão de que é preciso moldar-se ao gosto do freguês insiste em traduzir e divulgar importantes e raros documentos de estética teatral. Ensaios produzidos por um excelente grupo de colaboradores contemplam a teoria e a prática do teatro contemporâneo e uma entrevista feita por especialistas nos temas registra, em cada número, uma contribuição importante e original para que se possa acompanhar o teatro brasileiro em todas as áreas de criação. Ela, pois, bem alto com as taças para comemorar o número 27 desta publicação especialmente generosa porque cumpre a função de tornar acessível um domínio geralmente restrito aos especialistas das disciplinas teóricas. O crítico Sábato Magaldi os integrantes do grupo Cia dos Atores são os entrevistados do número que encerra o décimo ano da revista e sugerem a extensão do registro pretendido pelos editores. No campo editorial a chave de ouro das celebrações é maciça e finamente lavrada. Uma edição feita pela Perspectiva, organizada e prefaciada por João Roberto Faria, relembra o centenário da morte de Machado de Assis reunido em um só volume escritos sobre a arte teatral originalmente dispersos em periódicos. Com muito cuidado pelo estabelecimento dos textos a partir das fontes primeiras e notas que as edições de obras completas não puderam elucidar em razão de seu propósito generalista, este volume apresenta em perspectiva temporal um pensamento que confronta o palco e a literatura dramática, modifica-se diante das expectativas frustradas e tem o refinamento crítico que permeia também a obra ficcional. E para que não se acirrem os ânimos partidários vale lembra que Artur Azevedo, também morto em 1908, teve suas ideias teatrais muito bem contextualizadas por Faria em um volume anterior: Ideias teatrais: o século 19 no Brasil.

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