O teatro da mente de Richard Wagner em versão lírica

Maestro Daniel Barenboim oferece nova leitura de Tristão e Isolda em produção do Scala de Milão lançada em DVD

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Por João Luiz Sampaio
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São quase cinco horas sobre o ...silêncio. A ausência. E ainda assim, poucas obras são tão eloquentes ao descrever a filosofia do amor quanto a ópera Tristão e Isolda. Em 2009, completam-se 150 anos desde que o compositor Richard Wagner colocou o ponto final naquela que talvez seja a sua mais ambiciosa partitura. E, como mostra uma nova montagem da ópera, filmada em dezembro de 2007 no Teatro Alla Scala de Milão e lançada agora em DVD (Virgin), estamos longe de compreendê-la em sua totalidade. A origem de Tristão e Isolda é uma narrativa celta do século 12, recontada por diversas fontes desde então. Tristão, herói da Cornuália, captura a princesa irlandesa Isolda, que pretende oferecê-la a seu rei, Mark. No entanto, ela, inconformada com seu destino, oferece a ele a poção da morte. Um detalhe: sua dama de companhia a substitui pela poção do amor. E os dois, a partir de então, são obrigados a viver com a culpa e a intensidade de um amor impossível, mal de que se libertariam apenas por meio da redenção da morte. Para entender a adaptação de Wagner, é preciso recorrer ao filósofo Arthur Schopenhauer. Para ele, o universo não podia ser entendido como fruto da vontade de Deus, mas, antes, como expressão de um "impulso cego" - o homem é um ser movido por aspirações e paixões, constituintes da Vontade, princípio a nortear a vida humana. A poção do amor, para Wagner, entusiasta das ideias de Schopenhauer, seria o gatilho desse impulso cego. E Tristão e Isolda se transformaria, por meio de sua música, em algo como o teatro da mente humana. Trata-se de uma ópera estática, sem ação exterior. Tudo se passa dentro das duas personagens. Um bom exemplo é a cena final, em que Isolda descreve o corpo de Tristão subindo ao céu, seu coração se enchendo "de orgulho", batendo "sublime". "Não o sentem? Não o veem? Sou a única que ouve essa melodia? (...) Felicidade suprema!", ela canta. Como recriar em música estados da alma? É nessa busca que está a grande revolução da música de Wagner para Tristão e Isolda. De um lado, temos o uso dos leitmotiv, temas recorrentes que, em suas óperas, se associam a momentos específicos e vão reaparecendo ao longo da trama, comentando a ação, no caso, a flutuação de sensações das personagens. Mas Wagner vai além. Uma melodia, tradicionalmente, tem começo, meio e fim. Essa sequência organiza o discurso musical em um todo fechado. Mas, e se uma melodia não tivesse necessariamente um fim? E se esse fim pudesse ser disfarçado? Para cada acorde da música, Wagner então cria duas dissonâncias, mas resolve apenas uma delas, deixando que a outra ecoe enquanto novo acorde se forma. A música, assim, torna-se uma mistura de certezas e dissonâncias, que se opõem. E se completam. Afinal, a força desse amor só é tão forte quando sua impossibilidade. Conseguir manter essa tensão ao longo de cerca de cinco horas de música é um enorme desafio que, aqui, coube ao maestro Daniel Barenboim. Wagner é uma de suas especialidades, mas ele aponta nesta gravação para uma direção totalmente diferente do que nos habituou. Sua gravação da ópera em Berlim, nos anos 90 (selo Teldec), mostrava uma mão pesada, marcando fortemente cada clímax da narrativa. Desta vez, no entanto, o que ele nos oferece é um Tristão e Isolda doce, lírico. Talvez o motivo seja o trabalho com a orquestra do Scala, mais acostumada ao idioma da ópera italiana. Em todo caso, fica clara a diferença entre força e intensidade na interpretação, que acaba surgindo de dentro da música, dando significado ainda maior ao contraste entre momentos de sensualidade erótica, como no início do dueto do segundo ato, e outros de caráter quase incorpóreos, como a seção iniciada com "Sink Hernieder". A soprano alemã Waltraud Meier interpreta Isolda, ao lado do Tristão do tenor inglês Ian Storey. A autoridade com que ela constrói a personagem compensa o desgaste natural de sua voz, em especial nos graves. Um pouco hesitante de início, Storey faz um terceiro ato, em que Tristão se consome à espera do retorno da amada, para morrer ao seu lado, muito bonito. A concepção cênica é do francês Patrice Chéreau. Ele evita o uso de grandes e detalhados aparatos cênicos. Imensas paredes se deslocam, apenas sugerindo ambientes, como o navio do primeiro ato, e aprisionando os personagens. Mas a ousadia está mesmo na direção de atores. Tristão e Isolda é uma ópera de grandes sensações, desejos incontroláveis - e, para Chéreau, de pequenos gestos. Em seus devaneios de amor e morte, os personagens pouco se olham, parecem falar apenas a si mesmos. São como um selvagem colocado de repente frente a um espelho, ao qual observa com curiosidade e estranhamento. Tristão e Isolda não vivem o amor da mesma forma, são pessoas diferentes, procuram em recantos distintos a explicação para seus desejos. O único ponto de contato de ambos é a visão da morte como o fim da contradição, da paixão reprimida, da tortura. E o diretor, então, os faz se abraçarem. A ideia da morte por amor foi poucas vezes tão eloquente.

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