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O Tarantino do sexo

Por Matthew Shirts
Atualização:

Há mais de um ano, quiçá dois, venho me dedicando à leitura do último romance de Reinaldo Moraes, quase sempre no ônibus. Pode parecer muito tempo, e é, para um único livro, você tem razão. Mas consigo explicar. Participo do projeto dessa obra desde o começo. Não escrevi nada, nenhuma palavra. Tampouco dei ideias. Não é isso. Pornopopeia, que sai por estes dias, publicado enfim, pela Editora Objetiva, é de inteira responsabilidade do Reinaldo mesmo. Fui apenas o leitor de testes. Sabe aqueles bonecos brancos, tamanho gente, que são submetidos a impactos em alta velocidade, contra uma parede de tijolos, durante o desenvolvimento de automóveis e dispositivos de segurança tipo airbags? Foi o meu papel ao longo da elaboração dessa obra incomum, o do boneco de testes. O impacto é forte, mas confesso que me diverti à beça nesse ofício. Sou amigo do Reinaldo Moraes há mais de 25 anos, desde 1984, se não me engano, quando li seu primeiro romance, Tanto Faz, e pedi para conhecer o autor. É muito tempo! De lá para cá tive filhos que hoje são adultos. Reinaldo também. O mundo gira, enfim, e a lusitana roda, mas nossa amizade sobrevive, com minha admiração e gosto por sua literatura. Então, quando ele me disse que pretendia escrever um romance sem nenhuma autocensura, nenhuma restrição, contando através de um enredo mirabolante, policial e erótico o que lhe desse na telha do jeito que sempre quis, bom, aí me ofereci para ser o seu leitor de teste. Quis ler antes de todo mundo. Fui motivado pela curiosidade, pelo desejo de acompanhar o processo de criação de um romance, e, talvez, um pouco por precaução (vai que Reinaldo inventa um personagem gringo...) A primeira versão de Pornopopeia tinha mil páginas, impressas em papel formato A4. Formava uma pilha de 20 centímetros de altura na escrivaninha lá de casa. Antes de sair pela manhã, separava umas 40 páginas para levar no ônibus. Torcia sempre para passar primeiro o da linha Butantã-USP. É meu favorito. Recomendo-o, independentemente de qual seja seu destino. Nele encontro outros leitores de livros e revistas - meu povo - e vem equipado, ainda, com câmbio automático, o que facilita, e como, a vida do passageiro voltado para as letras. Percebi, logo, que Pornopopeia chamava a atenção de quem estivesse próximo no ônibus. Bastava tirar a maçaroca de 40 páginas da mochila e dar continuidade à leitura no ponto em que havia parado no dia anterior. Quando via, o passageiro do banco de trás ou o do meu lado havia se aproximado discretamente da obra, os olhos esbugalhados, com uma expressão de descrença na face, tipo "não acredito que alguém tenha escrito isso". Alguns pareciam se divertir com o texto inesperado e pornográfico, cheio de piadas; outros levantavam e trocavam de lugar, chocados ou ofendidos, pelo jeito. Com o tempo, passei a escolher o assento de acordo com a reação que minha leitura iria provocar no passageiro ao lado. Quase nunca falhava. Diverti-me com essa brincadeira durante meses. É que o romance é, de fato, inovador. Mistura uma literatura beat, à base do sexo explícito (aviso: e põe explícito nisso!), drogas e rock-n?-roll, com um enredo policial e picaresco. Reinaldo utiliza o sexo da mesma forma que Tarantino a violência: como pontuação. Tira sarro sem trégua da cultura pós-moderna, tal como vivida por produtores (artistas) e consumidores. Tudo em frases longas e bem torneadas, coisa de escritor fino e culto, com direito, inclusive, a intervalos para haicais e citações improváveis de Cesário Verde, para ficar em apenas um de muitos autores. Conta a história de Zeca, um cineasta marginal que precisa acabar um roteiro sobre embutidos de frango para pagar as contas e viabilizar um filme experimental que ninguém vai ver. Seus vícios particulares, embrulhados em dispersão intelectual e emotiva, o levam, no entanto, para uma aventura rocambolesca, erótica e, sobretudo, engraçada, que atrapalha seus "planos". Você não vai acreditar. É hilário. E mais não conto. No momento, estou na página 213 do livro impresso, que já deve estar à venda nas melhores casas do ramo. Das mil páginas originais, Pornopopeia foi reduzido para "apenas" 475 em sua versão comercial. Sinto falta de algumas cenas, mas não consigo parar de dar risada, mesmo lendo-o pela segunda vez. Coloco alguns dos trechos menos escandalosos no Facebook, onde gringos versados em português se divertem com possíveis traduções. Outras passagens, mais fortes, leio para o professor Antônio Pedro Tota pelo telefone. Ele não acredita. Depois de se recuperar das risadas, tosses e outras manifestações de incredulidade, Tota me pergunta carinhosamente se Reinaldo passa o dia inteiro pensando em sexo. E eu vou saber?, respondi. Mas que escreve uma barbaridade sobre o assunto, isso escreve.

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