O soldado sociólogo da Missão Francesa no Brasil

Autor viajou com intelectuais que criariam a Facudade de Filosofia, Ciências e Letras

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Por Walnice Nogueira Galvão
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Ao chegar ao Brasil como integrante do grupo europeu incumbido de fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mal sabia Claude Lévi-Strauss que sua biografia ficaria inextricavelmente ligada a nosso país. Simultaneamente, fundava-se a Universidade de São Paulo, congregando instituições de ensino superior até então avulsas. O objetivo era criar um centro teórico, de estudos de ciência pura e não aplicada. Já tínhamos Faculdades de Medicina, de Direito, a Politécnica, e outras, que davam formação profissional e portanto cuidavam da aplicação dos saberes. Faltava-nos uma que ensinasse filosofia, sociologia, zoologia, botânica, genética, física, química, astronomia, sem adjetivos, dedicando-se portanto à pesquisa, sem se atrelar aos interesses de qualquer profissão. Para estes casos já havia, por exemplo, filosofia e sociologia do Direito, química para a Medicina, etc. E esta seria a Faculdade de Filosofia. Os mestres europeus que acorreram trazendo suas contribuições se distribuíam assim: os franceses para as humanidades, os italianos para as ciências físicas e as matemáticas, os alemães para as ciências naturais. Num momento em que a perseguição se intensificava na Europa, vieram muitos judeus entre os italianos e alemães; entre os franceses, só Lévi-Strauss. Em atenção ao cunho inovador da escola, não seriam contratados professores aqui, mas apenas na Europa. E, além disso, exigia-se que fossem muito jovens, esperando-se que estivessem enfronhados nas últimas novidades do saber. Por isso, escolheu-se quem ainda não tinha nenhum título, sendo apenas "agrégé", ou seja, professor no secundário. Foi assim que Lévi-Strauss, que contava 27 anos e ainda era autor inédito, veio dar com os costados nestas plagas, para ocupar a cadeira de sociologia. Permaneceu por três anos, nos termos de seu contrato, e nunca mais voltou. Convidado pela USP para participar da celebração do jubileu de meio século da Faculdade de Filosofia nos anos 80, declinou do convite. Mas retornaria uma única vez em 1985, na comitiva da visita oficial do presidente François Mitterrand. Quando saiu Saudades de São Paulo (1996), com as fotos que o próprio Lévi-Strauss clicou na década de 30, Decio de Almeida Prado, que seria por 10 anos diretor do renomado Suplemento Literário deste jornal, escreveu Saudades de Lévi-Strauss, raro e precioso depoimento de ex-aluno. O depoimento seria depois recolhido em seu livro Seres, Coisas, Lugares (1997), com título e epígrafe que tomou emprestados do mestre. Ali figuram suas reminiscências do professor e da experiência memorável de ser aluno dele nessa faculdade, naquela época. Quando examinamos o catálogo de prenomes dos estudantes em Tristes Trópicos, todos futuramente intelectuais conhecidos, encontramos entre eles o de Decio. Dos membros da Missão Francesa, alguns se foram rapidamente, alguns permaneceram mais tempo. O historiador Fernand Braudel é outro que também ficou pouco. Já o geógrafo Pierre Mombeig, o filósofo Jean Maugüé, Paul Arbousse-Bastide, da cadeira de política, e o sociólogo Roger Bastide (não eram parentes) por aqui se demoraram. Este último ficou no Brasil por 16 anos, intervindo intensamente no panorama cultural. Retornado, Lévi-Strauss logo deixaria a França, porque, ao estourar a Segunda Guerra Mundial, se refugiou nos Estados Unidos, onde residiria até o armistício, só então regressando a seu país. Entretanto, Lévi-Strauss, como ninguém ignora, viria a tornar-se um dos grandes intelectuais do século 20. Quando ocorreu a "revolução estruturalista" dos anos 60, foi ele a cabeça principal e a inspiração para outros, como Roland Barthes, Lacan, Vernant. E as implicações de sua obra para toda a humanidade e para a civilização, tema que sempre o interessou, são de alcance universal. A partir daí, teria ampla e tardia influência no Brasil, mas isso porque o estruturalismo, a contragosto de seu inventor e a curto prazo, se tornou moda. Tanto Lévi-Strauss quanto Roger Bastide hauriram a matéria-prima de suas obras no Brasil, que lhes facultou o contato com outras etnias, índios para o primeiro, negros para o segundo. Ambos se debruçariam sobre nossa própria produção em etnologia e antropologia, fartamente citada em seus livros, que bem souberam aproveitar. E nunca é demais realçar a ousadia intelectual de Lévi-Strauss, ao tratar os mitos indígenas com os mesmos instrumentos de análise - e dando-lhes a mesma dignidade - que mobilizou para analisar o mito de Édipo em Antropologia Estrutural. Foi um ovo de Colombo: ninguém antes sonhara que tal procedimento fosse possível. Walnice Nogueira Galvão é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autora, entre outros, de As Musas sob Assédio

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