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O shopping dos fascistas

O britânico J.G. Ballard, lutando contra um câncer, prevê um futuro sombrio para a humanidade no livro O Reino do Amanhã, em que consumismo e fascismo rimam

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Se existe um escritor cujo repertório de obsessões esteja estreitamente ligado à própria vida esse é o britânico J. G. Ballard. Aos 78 anos, lutando contra um câncer na próstata, Ballard, autor de sucessos como Crash e Império do Sol - os dois livros adaptados para o cinema por Cronenberg e Spielberg, respectivamente -, entregou a seu editor, em outubro último, o manuscrito daquele que talvez seja seu último livro, Conversations with My Physician: The Meaning, if Any, of Life (Conversas com Meu Médico: O Sentido da Vida, se é que Ele Existe). Enquanto não chega ao Brasil, outro perturbador livro de Ballard é lançado no País, justamente num momento em que o mundo passa por uma crise econômica que pode determinar sua nova ordem política. Como sempre, é obra de um visionário, um escritor que parece escrever ficção científica mas que se habituou a antecipar o futuro. O livro chama-se O Reino do Amanhã (Companhia das Letras, tradução de José Geraldo Couto, 370 págs., R$ 54). Trata de fascismo e consumismo, rima nada agradável de ouvir e que incomoda nove entre dez sociólogos do planeta. O livro já começa com uma frase bombástica: "Os subúrbios sonham com a violência". E não termina nada bem. O futuro, segundo Ballard, testemunhará o confronto de vastos sistemas de psicopatologias - todos eles, garante o psiquiatra Tony Maxted, desejados e deliberados, parte de uma tentativa desesperada de escapar de um mundo racional e entediado com o consumismo. O médico diz isso numa conversa com o publicitário Richard Pearson, alto executivo de uma agência londrina que, em O Reino do Amanhã, se aventura pela suburbana Brooklands para concluir o inventário do pai, morto durante um atentado no shopping center da cidade. O discurso do psiquiatra é assustador. Sem meias palavras, ele alerta o forasteiro sobre Brooklands, definindo-a como um lugar "perigoso e transtornado", onde coisas sórdidas como racismo e intolerância fermentam. E conclui seu discurso de forma nada animadora, comparando a situação com a da Alemanha dos anos 1930: "As pessoas ainda acham que os líderes nazistas conduziram o povo alemão aos horrores da guerra racial. Não é verdade. Os alemães estavam desesperados para escapar de sua prisão. Derrota, inflação, indenizações de guerra grotescas, ameaça de bárbaros vindos do leste. Enlouquecer os libertaria, e escolheram Hitler para liderar a caçada". Eles precisavam, segundo Maxted, de um deus psicopata para venerar - e essa "loucura voluntária" não estaria muito distante dos sistemas que desencadearam cruzadas e fundaram impérios (ele está falando, claro, do cristianismo e do islã). Ballard fala por experiência própria. Nascido em em Xangai, China, ele foi mandado com sua família para um campo de prisioneiros após o ataque a Pearl Harbor , relatando sua infância confinada no autobiográfico Império do Sol quando voltou à Inglaterra, aos 16 anos. Depois de estudar medicina e tentar a carreira de piloto, publicou um livro considerado um marco na ficção científica, O Mundo Submerso (The Drowned World), em 1962. É uma distopia ainda orwelliana, antes que Ballard virasse igualmente um adjetivo no dicionário, indicando um autor envolvido com os efeitos negativos do desenvolvimento social e tecnológico. Nela, o mundo pós-apocalíptico vira uma parábola sobre a necessidade humana de regressão para reconstruir uma paisagem que está no inconsciente coletivo - a da Terra antes do trauma. Seguindo por essa trilha aberta em O Mundo Submerso e percorrida no último livro seu lançado aqui, Terroristas do Milênio, Ballard explora, em O Reino do Amanhã, a temível possibilidade de enfrentarmos, num futuro não muito distante, o fantasma de um novo fascismo, até mais assustador que o fascismo histórico, por ser sem rosto. Tudo patrocinado pelo fascínio que o consumo, os esportes e o nacionalismo exercem sobre a massa. Ballard, que já investiu contra o automóvel em Crash, mostrando como ele gerou uma monstruosa segunda natureza no homem - ser híbrido de duas pernas e um acelerador, que identifica sexo com velocidade -, agora investe contra o shopping center, o verdadeiro vilão de O Reino do Amanhã. Pearson, o publicitário que vai investigar a morte do pai, um ex-piloto que morreu assassinado no interior de um desses templos de consumo, acaba descobrindo que existem mais mistérios entre uma loja e outra do que sonha a filosofia do sociólogo polonês Zygmund Bauman. Pearson desconfia que o povo de Brooklands esconde algo sobre o atentado que matou seu pai e a suspeita se confirma quando um doente mental, acusado pelo crime, é liberado pela polícia. Decidido a esclarecer o mistério, ele acaba descobrindo a existência de dois grupos oponentes com igual vocação fascista, os que defendem os shoppings como novas catedrais e os nostálgicos integrantes de uma brigada à espera de um novo líder que os conduza à terra prometida. Apesar disso, Ballard diz que não se considera o profeta da distopia moderna. Sendo um adjetivo no dicionário, como freudiano ou marxista, ele responde que passou dois terços de sua vida na era mais trágica, cruel e violenta da humanidade. Alguém imagina algo pior? Ballard imagina.

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