O reinício da história econômica?

Pensadores franceses discutem em Aix-en-Provence a emergência das novas formas de capitalismo

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Por Andrei Netto
Atualização:

Admitamos por um instante, ao longo deste texto, que a controversa tese do filósofo e economista norte-americano Francis Fukuyama tenha sido correta. Suponhamos que a história alcançou de fato o fim no dia do consenso universal em torno da democracia, ponto final dos conflitos ideológicos. Digamos que o dia deste consenso tenha se situado, como afirmara o autor em The End of History (1989) e em O Fim da História e o Último Homem (1992), no final da guerra fria - 9 de novembro de 1989, data da queda do Muro de Berlim, por exemplo. Ou ainda com derrocada de alguma das ditaduras ibéricas, latinas ou soviéticas. Imaginemos ainda que Fukuyama não tenha realizado uma apropriação superficial do conceito de "fim da História" tecido por Hegel em A Fenomenologia do Espírito e que Jacques Derrida jamais o tenha contestado em O Espectro de Marx. Feitas as ressalvas, e imaginando que a História tenha acabado em 1989, saiba que aos olhos de dezenas de pensadores franceses das ciências políticas e econômicas teríamos vivido uma espécie de novo "fim da História". E que, por extensão, estamos no começo de uma nova. Considerações nesse tom, que há meses respingam das principais universidades francesas, foram externadas no início de julho em Aix-en-Provence, na França, por nomes como Philippe Aghion, Jeffry Frieden e Peter Hall, de Harvard, Raghuram Rajan, da Universidade de Chicago, e Edmund Phelps, prêmio Nobel de Economia, todos lá reunidos pelo Círculo de Economistas - grupo de reflexões do qual fazem parte influentes pensadores das ciências econômicas da Europa. Não que o evento tenha sido realizado para endossar delírios de Fukuyama ou dos neoconservadores norte-americanos, cujos trabalhos servem de esteio filosófico a políticas do governo de George W. Bush. Mas o evento acabou por reforçar a crença de todos na vitória do capitalismo após o fracasso do socialismo real, no declínio do modelo de "capitalismo continental europeu" tal qual existiu, na hegemonia liberal anglo-saxônica - e na sua recentíssima superação, um hipotético "reinício da História". As discussões são claramente influenciadas pela admissão de que em diferentes pontos da Europa - França, Alemanha, Polônia, Suécia -, partidos "de esquerda" estão mergulhados em intermináveis crises de valores, além de derrotados moral e eleitoralmente. A mais recente constatação vem da França: a eleição à presidência de Nicolas Sarkozy, expoente político de uma "direita descomplexada", pragmático, liberal em discurso e nacionalista e protecionista quando lhe convém. Sarkozy, afirmam mesmo pensadores econômicos de esquerda, representa a rejeição do eleitorado ao vazio de discurso expresso pelas confusas proposições econômicas - sejam socialistas ou sociais-democráticas - do Partido Socialista, um dos líderes naturais e históricos da esquerda democrática ocidental no século 20. Não há mais, seja nas atas do partido, nas palavras de seus líderes ou no imaginário de seu eleitorado, uma alternativa econômica coerente, bem definida e aplicável a um mundo conectado em redes. Não há mais - e este seria o segundo hipotético "fim da História" - um "capitalismo continental europeu" de raízes keynesianas, o modelo adotado, por exemplo, na França e nos países nórdicos no pós-guerra, capaz de conciliar bem-estar social, desenvolvimento humano, larga e incontestável proteção social e crescimento sustentável com a palavra-chave do mundo contemporâneo: competição. Diz-se que, se não se pode competir na economia global, não se pode sobreviver. Maior do que as conquistas eleitorais de escalas nacionais sugerem, especulam os pensadores, a vitória da filosofia liberal vem marcando um novo divisor de águas na história da ideologia, um abalo - definitivo? - do modelo de capitalismo com proteção social. Vence, afirmam os intelectuais, o formato baseado na meritocracia, na competição e no empreendedorismo individual; perde o conceito de "solidariedade", de fraternidade e de igualdade mediada pela presença do Estado. "Sim, o capitalismo anglo-saxão venceu. Por quê? Efeito da globalização em todas as suas formas, dos mercados financeiros, das flexibilizações do mercado de trabalho", entende Franck Van de Velde, mestre de Conferências da Universidade de Lille-I e um dos líderes da Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Keynesianos (Adek), da França. A superação do modo de produção socialista entre os anos 1960 e 1990 foi determinada pela maior eficiência dos pilares do capitalismo - proteção jurídica, liberdade de empreendimento associado ao risco, apropriação privada dos serviços e da exploração da natureza, propriedade privada dos meios de produção, liberdade de trocas, procura pelo lucro, acumulação de capital e especulação. Já a superação do modelo de capitalismo continental europeu, de bem-estar social, nos anos 1990 e 2000 teria sido determinada pela afirmação do capitalismo financeiro como alternativa de crescimento dos Estados protecionistas então estagnados, como a França, mergulhados em desemprego, crises sociais e na recusa inicial em se atirar ao jogo da globalização. Impulsionada por "monetaristas" como Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia de 1976 - ele próprio inspirado nos princípios da economia neoclássica -, a economia liberal anglo-saxã soube impor, grosso modo, a idéia de que a moeda pode regular a relação de forças entre demanda e inflação. Provêm dessa lógica de raciocínio convicções muito familiares aos brasileiros, como ortodoxia econômica, definições de metas de crescimento e de inflação, estabilidade monetária e independência do Banco Central. Seu efeito colateral - previsto ou imprevisto, desejado ou não - foi fazer explodir em importância o mercado financeiro, globalizado graças às tecnologias da informação. Dissociou-se, então, "produção" de "finanças". Se no passado era preciso produzir para acumular, no presente produzir, gerar emprego e renda parece um capricho de quem ainda não entendeu as novas regras do jogo - como os velhos e novos keynesianistas. Hegemonia e novo fim da História? Segundo a lógica de Fukuyama, talvez. Desolador? Não. "É o início de uma nova História, muito positivo por ser marcado por um período de crescimento poderoso, mas também perigoso por se tratar de uma etapa ainda sem a regulação necessária", entende Jean-Hervé Lorenzi, presidente do Círculo de Economistas. Se há um fim, há um começo. À medida que elimina concorrentes "externos", sustentam os pensadores de Aix-en-Provence, o liberalismo anglo-saxão parece prestes a criar, a partir de sua própria fragmentação, seus novos concorrentes. Ao se globalizar e crescer ao extremo, essa economia liberal global precisa aprofundar sua presença onde a demografia é maior - leia-se "onde o mercado é maior". Aí entram China, Índia, Rússia, Brasil e os demais emergentes e ganha nova força a União Européia. Suas importâncias políticas e econômicas crescem porque os mercados internacionais precisam realimentar e saciar sua voracidade, seja pela especulação, seja pelo consumo local. E é à medida que suas importâncias crescem que surgem as recentes dissociações do modelo liberal, dizem os pensadores. Excetuando-se o Brasil - um aluno aplicado da lógica anglo-saxã dos mercados internacionais -, os demais fomentam formas alternativas de capitalismos. Sustenta a declaração de Aix-en-Provence: "Ao contrário do esperado, o capitalismo de mercado não se tornou o único modelo." Há, segundo o consenso, manifestações importantes do chamado "capitalismo familiar" no sul da Europa e no México, ou do "Novo Capitalismo de Estado" na China, na Rússia e no Oriente Médio, sempre financiado pelos grandes excedentes de pagamentos correntes, injetados - ironia - pelas empresas européias e norte-americanas, onde hoje o liberalismo anglo-saxão é mais forte. É então que se daria o "reinício da História". Se o modelo de capitalismo liberal anglo-saxão não será único, global, como se chegou a imaginar, é preciso desenvolver as novas alternativas. China, Índia e Rússia o fazem, cada qual à sua maneira. Resta, prega o Círculo de Economistas, a Europa Continental reformar-se como opção de modelo econômico distinto em relação ao preconizado pelo liberalismo puro e simples dos Estados Unidos e pelo social-liberalismo da Terceira Via de Anthony Giddens e Tony Blair da Inglaterra. "O liberalismo atual representou melhoria do nível de vida mundial. Depois de 20 ou 30 anos, a pobreza mundial recua e há progressos na América Latina, na Ásia e até mesmo em alguns países africanos. Mas as questões centrais são: é durável? É democrático? É ambientalmente seguro?", contesta André Straus, historiador econômico do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), de Paris. "Precisamos de instrumentos de regulação globais mais fortes." Nesse ponto se revela uma das contradições da "Europa multilateralista": prega-se a coabitação das novas formas de capitalismo internacional, mas se recusa a adoção de modelos externos. A saída é refundar o próprio modelo, diz a declaração de Aix-en-Provence. É "defender" o capitalismo pela reforma da concepção de Europa Continental, baseado na idéia de uma economia de mercado livre, com regras de direito claras, como o modelo anglo-saxão, mas também por instrumentos de bem-estar social: ferramentas de redistribuição de renda eficazes, que não engessem a economia, aplicação de regras de reciprocidade em relação a parceiros que não respeitem as regras e pelo multilateralismo nas relações políticas e socioeconômicas. Uma Terceira Via inglesa, muito mais social e menos liberal. A dúvida é quais mecanismos garantiriam essa nova configuração de pesos. Nesse ponto, o consenso de Aix-en-Provence é só lacunas, mais uma vez. Mas talvez, admitindo que Fukuyama estivesse correto, o raciocínio dos pensadores não alinhados ao liberalismo anglo-saxão seja: "A história está só recomeçando."

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