O recurso poderoso da imaginação

Em Manual da Paixão Solitária, Moacyr Scliar aborda conflito entre lei e vontade

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Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

A imaginação é a melhor arma contra o poder. A mesma afirmação vale para o amor, que pode ser destruído por meia dúzia de devaneios. E, assim, o ato de imaginar continua como o recurso mais poderoso para quem deseja ser livre. A fantasia está acima da lei, mesmo que isso seja inconveniente. O novo romance de Moacyr Scliar, que chega às livrarias hoje, Manual da Paixão Solitária, trata dessa perene contradição entre vontade e conveniência. "Os conflitos humanos emergem desse imbróglio com muita nitidez", diz Moacyr Scliar. Manual da Paixão Solitária (Companhia das Letras, 236 págs., R$ 39,50) tem como inspiração o capítulo 38 do Gênesis, no Antigo Testamento, passagem que narra a história do patriarca Judá, dos seus três filhos e de uma mulher chamada Tamar. Antes de contar o que diz o tal capítulo é preciso falar que Moacyr Scliar apostou em dois pontos de vista para elaborar a narrativa fluida do romance, adaptada a uma linguagem contemporânea que não se furta a falar dos desejos mais picantes dos personagens. Scliar diz que sua motivação é transpor os dramas bíblicos para o presente. Na primeira parte, um excêntrico professor - Haroldo Veiga de Assis, especialista reconhecido internacionalmente e único brasileiro a estudar os Manuscritos de Shelá - narra o capítulo 38 em forma de monólogo, dando voz a Shelá, um dos filhos do patriarca. Haroldo é um dos participantes do Congresso de Estudos Bíblicos, que ocorre em 1990 e que escolheu aquela passagem como tema dos debates. Na segunda parte, a professora Diana Medeiros conta a mesma história, mas agora sob a perspectiva de Tamar. "A adoção de dois pontos de vista narrativos é o típico caso em que um personagem como a Tamar pode ser vista como vilã ou como heroína", diz Scliar. Segundo o monólogo do professor Haroldo, Tamar, a escolhida por Judá, é uma mulher astuciosa que usa sua imensa beleza para ter domínio sobre o clã. Segundo o texto de Diana, Tamar é aquela que lutou contra as regras opressoras para realizar o próprio desejo. O detalhe é que Diana foi aluna de Haroldo - ela era uma estudante rebelde, ele um professor reacionário. A vida universitária, naquele momento, era afetada por lutas políticas acirradas. Anos depois, Diana foi ao congresso para contrariar com a sua versão a do ex-mestre. Mais um dos conflitos de Manual da Paixão Solitária, que não chega a ter final feliz, mas esperançoso. Segundo Moacyr Scliar, a diferença nas formas da primeira e da segunda parte foi inconsciente, mas o resultado mostra como "o relato de Diana/Tamar é mais coloquial, enquanto o de Haroldo/Shelá é de um cara com veleidades literárias, com linguagem rebuscada que sabe se adaptar aos fatos descritos, como no caso em que o narrador parece um adolescente ao narrar uma masturbação." Voltando às Sagradas Escrituras. O enredo do capítulo 38 do Gênesis é feito de reviravoltas surpreendentes. Conta uma história, inserida na narração sobre José no Egito, que fala de Judá, um hebreu, irmão de José e pai de três filhos com uma canaanita - Er, Onan e Shelá. De acordo com a tradição tribal, o patriarca precisa escolher uma esposa para o filho mais velho. A escolhida é Tamar. Er não pode cumprir a regra. Desagrada a Deus e é morto. Ali se inicia o primeiro conflito no romance de Scliar. Embora todos prefiram atribuir a morte a um castigo divino, Er se suicidou porque era homossexual. Ele não pôde agir contra a própria vontade. "Estamos falando de uma época em que os valores simbólicos eram muito importantes", diz Scliar. "As pessoas viviam em função de preceitos, que faziam com que elas tivessem de desempenhar um papel preestabelecido." A lei do levirato diz que, caso o filho mais velho não deixasse descendência masculina ao morrer, o irmão deveria engravidar a viúva. "É uma forma de manter as propriedades dentro da tribo." Acontece que Onan, o filho do meio, descumpre esse papel predeterminado. "Se ele tivesse seguido a regra, o drama não existiria", diz Scliar. "Mas o conflito resulta dessa contradição entre a paixão solitária de Onan e as imposições coletivas, daí nascem a história e a ficção." À semelhança do irmão mais velho, Onan padece sob a ira divina, ao não engravidar a viúva. Ele deseja ter filhos apenas com a mulher que ama, e não com aquela que lhe foi imposta - a solução é praticar o coito interrompido. Sobrou Shelá. Mas ele é só um adolescente. O patriarca Judá tem de realizar mais uma cerimônia entre um filho e Tamar. Com medo de que Shelá tivesse o mesmo destino que os irmãos, Judá dá a desculpa de que o caçula não é homem-feito. Ressentida, Tamar volta à casa dos pais e se percebe enganada pelo sogro. A astúcia entra em cena. Tamar se disfarça de prostituta pagã e se deita com o patriarca, que a engravida. Nascem dois gêmeos - deles vão descender o rei Davi e Jesus, o profeta. Shelá, apaixonado por Tamar e pelas próprias fantasias, ficou na mão. "A Bíblia não tem só personagens bonzinhos, ela narra história de rebeldias, reconhece que as transgressões são possíveis sem fazer um juízo de valor", diz. O conflito entre vontade e conveniência reaparece no fim, com Diana e Haroldo. Para não estragar a surpresa, é possível dizer que ambos se encontram numa situação impensável para duas pessoas tão diferentes. "A verdade é que a gente desperdiça boa parte da nossa vida em intrigas e conflitos que se revelam inúteis", diz. "Ao fim e ao cabo, a autenticidade das emoções é o que pesa." E ao ser humano resta imaginar e amar, mesmo sob o risco de que essas atividades sejam sua destruição. AUTOR VÊ BÍBLIA COMO UMA ANTOLOGIA DAS EMOÇÕES HUMANAS AUTOCOMPREENSÃO: O gaúcho Moacyr Scliar é leitor inveterado da Bíblia. "Não sou um leitor religioso, mas literário da Bíblia, que é uma antologia das emoções humanas" diz. "Embora tenham sido escritas há milhares de anos e marquem a trajetória de um povo, as histórias bíblicas surpreendem por continuar legíveis e examinar as pessoas nas relações as mais diversas." Manual da Paixão Literária não é o primeiro romance de Scliar baseado em passagens bíblicas, uma tradição da literatura universal, que renova o legado "de um povo que, em vez de grandes monumentos, é feito de palavras escritas". A Mulher Que Escreveu A Bíblia e Os Vendilhões do Templo estão entre as obras de Scliar inspiradas na Bíblia. Ganhador do Jabuti de melhor romance de 2000, o primeiro conta a história de uma mulher que descobre ter sido, no século 10 a. C., uma das 700 esposas do rei Salomão - a mais feia, mas a única capaz de ler e escrever. Encantado, o soberano encarrega a mulher de escrever a história da humanidade. Os Vendilhões... parte do relato de poucas linhas, no Evangelho de Mateus, sobre a expulsão por Jesus de mercadores que atuavam diante do Templo de Jerusalém. A obra é dividida em três partes - cada uma passa em diferentes épocas: 33 d.C., 1635 e o tempo atual. Scliar se preocupa em atualizar as histórias, mesmo se tratarem de temas atemporais. Em Manual..., o escritor é visto como testemunha e, por isso, participante das coisas do mundo. Não sendo qualquer testemunha, porque vê além, e o privilégio poderia ser um fardo. "Mas a literatura não foi feita para fazer ninguém sofrer. O bom da literatura é que ela nos desvenda um caminho para a autocompreensão, orientado pelo prazer e pela emoção." Trecho Despi-me também, deitei-me ao lado dele, e igualmente cobri-me com a manta. Ali ficamos, imóveis, em silêncio, fitando insistentemente o teto. O que ele via naquele teto? (...) A imagem de Deus, por acaso? Deita de costas e pensa em Deus? Não, isso era o que eu deveria fazer. O conselho para ele era outro: deita sobre tua esposa, submete-a com teu peso, mesmo que sejas magro (e se és magro trata de engordar, trata de criar barriga, o casamento é bom para isso, para criar barriga); penetra-a, arrebenta o hímen que, acessório descartável, impede-a de ser uma mulher completa, despedaça-o em mil fragmentos, fragmentos que jamais possam se reunir, fragmentos que devem se despedir uns dos outros, adeus, irmão fragmento, (...) é a regra implacável deste mundo cruel em que a união, mesmo precária, de uns implica a dolorosa e, no caso, sangrenta separação de outros, mas assim é a vida, a vida odeia hímens, a vida odeia barreiras.

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