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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|O que seria do mundo sem uma espécie chamada homo sapiens?

Em O Mundo sem Nós, de Alan Weisman, futuro é vislumbrado sem o menor sinal de seres humanos

Atualização:

Noves fora o nosso caos aéreo, com suas repercussões previsíveis e imprevisíveis, em apenas sete dias, um terremoto danificou uma usina nuclear no Japão, os americanos admitiram não conseguir inspecionar mais do que 1% dos seus alimentos importados, e especialistas internacionais alertaram que, daqui a 15 anos, a poluição do ar levará à morte 600 mil chineses e provocará doenças respiratórias em mais 20 milhões. No sétimo dia, o Diabo descansou. Mas sem tirar o olho de Congonhas. Se o fim do mundo não está tão perto quanto acreditam os milenaristas e paranóicos em geral, bem menos longe do que calculam os otimistas parece estar. Parece. De que fim do mundo, afinal, falamos? Do fim do universo ou do fim da Terra e seus habitantes? Considerando-se que o universo continua fora de nossa esfera de interferências daninhas, sobram o planeta que nos coube habitar e o resto da espécie com a qual fomos condenados a viver. O imaginário já arriscou incontáveis palpites, na literatura e na tela. A não-ficção não pára de nos alertar para os erros do passado, os abusos do presente e os riscos do futuro - e o mais recente e completo balanço da insanidade humana talvez seja Colapso, de Jared Diamond, publicado há dois anos pela Record. Nas especulações mais sinistras, a Terra e a espécie humana desaparecem juntas, muito mais vezes com um estrondo do que com um suspiro. A grande novidade de O Mundo Sem Nós (The World Without Us), de Alan Weisman, recém-traduzido pela Planeta, é vislumbrar um futuro sem a espécie humana, apenas. Um único sobrevivente sobre a face da Terra foi o que deixou Mary Shelley, a criadora de Frankenstein, em outro romance, The Last Man, escrito em 1826. Naquele tempo, o apocalipse em geral chegava a reboque de terríveis moléstias, letais e pandêmicas. Quem delas, milagrosamente, lograsse escapar, virava herói, quase sempre com a incumbência de registrar o que sucedera aos seus semelhantes, embora isso pudesse ser feito, e muitas vezes o foi, por um narrador neutro e onisciente, o autor-Deus. Quando não eram pestes devastadoras, eram dilúvios de ressonâncias bíblicas - ou desastres cósmicos, como o descrito naquela conversa entre Eiros e Charmion, fiada por Edgar Allan Poe em 1839. Eiros e Charmion se refugiavam, rebatizados, no Paraíso; os sobreviventes de H.G. Wells (A Guerra dos Mundos) migravam para um novo planeta, e o mesmo fariam os supérstites de Ray Bradbury, Richard Matheson, Nevil Shute e outros tantos autores movidos pelo que Susan Sontag rotulou de ''''imaginação do desastre''''. Só três humanos sobravam em O Diabo, a Carne e o Mundo, filme-hecatombe de 1959: um branco (Mel Ferrer), um negro (Harry Belafonte) e uma loura (Inger Stevens). Repovoado por eles, o mundo estará salvo - e, miscigenado desde o nascedouro, sem conflitos raciais à vista. Oito anos antes, meia dezena de americanos escapara ao holocausto atômico, em Os Últimos Cinco (Five), dirigido por Arch Oboler. Com o passar do tempo e ao sabor de novas pestilências, os sobreviventes foram escasseando. Charlton Heston foi o único bípede a sair vivo de uma guerra biológica, em A Última Esperança da Terra, daí porque o apelidaram de ''''Homem Ômega''''. Sempre restava alguém para testemunhar o apocalipse e reconstruir o mundo a partir de suas ruínas. Especulações ficcionais exigem narradores oniscientes e heterodiegéticos, que atuam como interfaces sobrenaturais entre o leitor e o relato. Assim, por exemplo, foram escritas duas raridades britânicas do início do século passado: The Purple Cloud, de M.P. Shield, publicada em 1901, e The Last Generation, de James Elroy Flecker, editada em 1908. Shield imaginou uma Terra depopulada por uma nuvem de cianogênio, e Flecker, a autoextinção da humanidade via esterilização voluntária. Nessas duas fantasias, a Terra, mesmo agredida, sobrevivia; o homo sapiens, não. Mas nem Shield nem Flecker se aventuravam a imaginar o que aconteceria com o planeta sem a presença humana. Demasiado antropocêntricos, deviam dar como inevitável a morte da Terra se entregue à própria sorte; vale dizer, se entregue tão somente às forças da natureza e também, no caso de The Last Generation, ao savoir vivre dos animais. Em O Mundo Sem Nós, não sobra ninguém para contar a história. Nem precisava, pois, não sendo obra de ficção, prescinde de um narrador tradicional. Quem monopoliza a narrativa é Alan Weisman, premiado jornalista americano empenhado em demonstrar, com a ajuda de um esquadrão de cientistas, que a Terra não só não precisa da gente para continuar seu curso vital como deverá melhorar muito sem a nossa, habitualmente nefasta, presença. Audaciosa e caleidoscópica aventura intelectual, com alternadas viagens ao futuro e ao passado, achegas científicas, e digressões filosóficas e políticas, O Mundo Sem Nós não se compraz em sermões e clichês ambientalistas. Weisman escreve como se fosse um observador curioso e compassivo de outro planeta, abordando o que a Terra já foi, o que virou, e o que a espera a curto, médio e longo prazo. Seu modus operandi, por assim dizer, tem menos vínculos com sisudos estudos acadêmicos do que com Um Conto de Natal, de Charles Dickens, e A Felicidade Não se Compra (It''''s a Wonderful Life), de Frank Capra. Resta saber se o homem afinal verá a luz, como o usurário Scrooge, depois de alertado por Marley e três fantasmas, e George Bailey, o suicida de Capra, depois de convencido (e guiado passado adentro) pelo angelical Clarence. Para responder à pergunta sobre o que aconteceria com a Terra se nós deixássemos de existir, Weisman cumpriu um longo tour por lugares tão díspares como a reserva florestal de Bialowieza Puszcza, na Polônia, as antigas cidades subterrâneas da Capadócia (Turquia), a zona desmilitarizada entre as duas Coréias (um santuário de vida selvagem), os poços de petróleo de Houston (Texas), os túneis do metrô de Manhattan, os hotéis abandonados de Chipre, o Canal do Panamá, etc. Em todos eles recolheu histórias e fez constatação aterradoras. Por exemplo: se não houvesse absolutamente ninguém para cuidar dos poços e das refinarias de petróleo, eles explodiriam, e suas piras inextinguíveis provocariam um inverno químico, liberando gases que contaminariam o mundo inteiro. Um dia, o flagelo chegaria ao fim: os metais pesados acabariam no fundo dos oceanos, enterrados por conchas e pedras calcárias. Tudo isso sem a ajuda do homem, que, vale lembrar, há muito estaria extinto. Por que e como o homem surgiu?, pergunta-se Weisman. Era inevitável que isso acontecesse? E se desaparecêssemos, que chances teríamos de reaparecer? Resposta cautelosa: tudo depende do degelo. Foi a Idade do Gelo que levou certos macacos a trocar a floresta pelas savanas, onde, eventualmente, tornaram-se hominídeos. Inevitável, portanto, não foi. Nem se repetiu o fenômeno. Se nós sumirmos, quem dará o próximo passo evolutivo? Os babuínos? Ajudados por uma nova era do gelo? Sem o homem, o supremo predador, a fauna e a flora floresceriam, recuperando um espaço e uma biodiversidade há séculos violentados, sobretudo, pela ganância. O que das ruínas sobrasse (a água, o mofo, os fungos, as bactérias e outros elementos destruiriam praticamente tudo, só protelando o fim do ferro fundido: longa vida aos hidrantes!), seria coberto por vegetação resistente, tal como vimos no filme Fuga no Século 23 (Logan''''s Run). Nosso planeta reverteria aos idos edênicos. Sem Adão, nem Eva. Não ficaria ao deus-dará, mas à natureza-dará. Sapos e demais batráquios procriariam nos rios metropolitanos. Ursos, lobos e coiotes andariam livremente pelas antigas urbes. Assim com os símios, que, mesmo beneficiados por um upgrande mental, talvez não dessem bola para os best sellers protagonizados por animais, se é que algum artefato de papel conseguirá sobreviver aos desgastes do tempo e da poluição, e à falta dos cuidados de conservação que só o homem lhe podia dar. Nenhum animal tentou mudar mais o mundo que o homem. De preferência, aniquilando outras espécies. O paleoecologista Paul Martin revelou a Weisman que os humanos vindos da África e da Ásia exterminaram três quatros da megafauna pleistocênica do continente norte-americano, que era muito mais rica que a da África. Havia por lá animais descomunais, como tamanduás e ursos gigantes, leões maiores e mais velozes que os africanos, afora os mamutes. Nenhum deles podia suspeitar que aquele minúsculo animal bípede lhe oferecesse perigo. Na África, ao contrário do Novo Mundo, a megafauna só sobreviveu por ter crescido junto com os humanos - e aprendido a temê-los. Se o homem desaparecesse da África, e, com ele, a caça, a pecuária e a agricultura, a população dos grandes mamíferos aumentaria tremendamente. Os elefantes, cuja quantidade o comércio de marfim reduziu de 10 milhões para meio milhão, recuperaria a prole perdida, a despeito da falta de alimentos para tantas trombas. Aí entraria em cena a seleção natural, não a carabina e o trator do homem. Alarmista, mas não de todo pessimista, Weisman arrisca alguns conselhos para que o mundo continue usufruindo da nossa presença. Tolerância zero com o descarte de plásticos, o veneno número um do biossistema (há seis vezes mais polímeros sintéticos do que plâncton nos oceanos). Redução drástica do índice demográfico: se, de hoje em diante, cada casal só tivesse um filho, em 2100 a população mundial poderia voltar aos 1.6 bilhões de habitantes do século 19. Malthus escreveu certo por linhas tortas: há gente demais, sugando e sujando a Terra. Destruí-la, assegura Weisman, não conseguirão. A natureza agüenta todas as nossas agressões. Nós, não.

Opinião por Sérgio Augusto
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