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O problema: ingressos pela metade

Meia-entrada mascara preconceito com produção artística e deve ser discutida

Por Beatriz Segall e Paulo Pélico
Atualização:

A idéia parece boa. O gesto parece nobre. A iniciativa governamental afigura-se como socialmente justa e os legisladores, ao formularem os dispositivos, pareciam movidos por altos valores como acessibilidade à cultura, redistribuição de renda, formação do jovem e amparo ao idoso. Logo, ao garantir o benefício da meia-entrada a estudantes e maiores de 65 anos em teatros, cinemas e casas de espetáculos no País, a legislação estaria fundando-se no direito e legitimada no princípio do interesse público, certo? Errado. Isto é o que ela aparenta se vista superficialmente. Quando bem examinada revela o desastre econômico-cultural em que se transformou. Um caso exemplar de equívoco bem-intencionado que produz modestos benefícios e volumosos malefícios. Na área teatral podemos afirmar com segurança que esta lei não cumpre nenhum dos louváveis objetivos que a inspiraram e, ao invés disso, gera prejuízos a particulares, pune a maior parte da população com ingressos cada vez mais caros e, por decorrência, contribui para o processo de esvaziamento das platéias que vem acometendo o teatro brasileiro há algum tempo. O instituto da meia-entrada nunca colaborou de forma importante para a formação de público, uma das justificativas para a medida, porque cometeu o erro de não restringir o benefício ao estudante e idoso de baixa renda. Hoje, influenciada por outros fatores, acaba beneficiando majoritariamente quem vai ao teatro em carro de luxo. Pense: não seria simpática uma lei que assegurasse aos nossos estudantes e idosos o direito de pagar 50% do valor de uma consulta médica? De uma cesta básica? Na compra de jornais? Além de simpático seria bastante útil. Então, por que não se faz? Simples, porque não se pode. Consultórios médicos, supermercados e bancas de jornal pertencem à iniciativa privada e neste âmbito os seus agentes têm de ter garantida a liberdade de definir a sua própria política de preços, um princípio básico da economia de mercado. Então, por que ao produtor teatral este direito é negado com naturalidade? Porque no Brasil até hoje esta atividade é vista como uma ocupação diletante, não como um empreendimento econômico profissional. O resultado é que há dez anos a meia-entrada não passava de 15% do total dos ingressos vendidos nas bilheterias teatrais. Hoje chega a inacreditável marca de 80%, quintuplicando a sua participação. No caixa do produtor estes 80% representarão um impacto negativo de 40%. Com as despesas das companhias teatrais do mesmo tamanho e a receita 40% menor, não há como fazer mágica, o preço nominal do ingresso tem de subir sobrecarregando ainda mais o público pagante de inteira que, naturalmente, tende a diminuir, desequilibrando ainda mais as contas, retroalimentando o processo que se torna progressivo. O curioso é que nenhum dado do IBGE aponta um crescimento de 80% na população de estudantes e idosos no País neste curto período. Então, como se explica o fenômeno? É elementar: o que se ampliou formidavelmente foi, digamos, o jeitinho de interpretar o conceito "estudante". Segundo a lei, a carteirinha que dá direito ao benefício deveria ser emitida somente em favor de alunos matriculados em instituições do ensino reconhecidas pelo MEC, mas hoje qualquer pessoa que faça um curso de idioma, de informática, corte-costura e até quem freqüenta academias de ginástica, poderá obter facilmente o documento. Não são raras as promoções de revistas, emissoras de rádio e até pizzarias que têm como objeto a distribuição de carteirinhas da meia-entrada, sem qualquer critério ou fiscalização. Por meio desta fraude, uma multidão de novos beneficiários do sistema termina subvencionada por aqueles que não entraram na farra e pagam pelo ingresso inteiro. Mais: se na bilheteria um produtor desconfiar da legitimidade ou autenticidade de uma carteirinha, não terá meios para checar. Se guiado pela intuição este produtor recusá-la poderá terminar a noite dando explicações ao delegado. Por outro lado, se resolver fazer uma promoção em determinado dia adotando um preço promocional único, a meia-entrada valerá metade do preço promocional "único". Se decidir inovar e estender a meia-entrada a toda a população, indistintamente, os portadores das poderosas carteirinhas terão direito de pagar metade da metade, bastando para isso chamar a polícia. O problema não se resolve e tende a se agravar. Como é fácil fazer cortesia com chapéu alheio, os nossos legisladores têm sido prolíferos e criativos na formulação de novas leis de mesma natureza. Uma mais esdrúxula que a outra e sem jamais se informar sobre o assunto. Já temos leis, e propostas de leis, nas esferas municipais, estaduais e federais sobrepostas e que concedem, ou pretendem conceder, a meia-entrada a servidores públicos, gestantes, portadores de deficiências, doadores de sangue, entre outros merecedores da generosidade compulsória da classe teatral. Recordemos sempre que facilitar a acessibilidade à cultura para quem de direito é uma obrigação constitucional do Estado, não uma função de particulares. O caso é preocupante. Até o final dos anos 80 um espetáculo teatral realizava na média seis sessões semanais, de terça-feira a domingo. Os grandes sucessos chegavam a oferecer oito apresentações com sessões dobradas no fim de semana. Havia volume de público para isso. Atualmente os espetáculos mal chegam a três sessões por semana. Claro que o encolhimento do público teatral não se deve a uma única causa e sim a um conjunto de fatores combinados, os quais não cabe discutir aqui. Porém, é inegável que a instituição da meia-entrada nos últimos anos vem assumindo o papel protagonista - ou antagonista - neste drama. A classe teatral espera um debate amplo e mais democrático sobre este grave problema que prejudica enormemente uma atividade essencial em qualquer sociedade. Beatriz Segall é atriz e produtora de teatro. Paulo Pélico é dramaturgo e produtor de teatro

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