O poeta que operou no tempo mítico

Diálogo entre contemporaneidade e tradição marca o vigor experimentalista dos versos de Entremilênios, de Haroldo de Campos

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Por Mônica Rodrigues da Costa
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É um paradoxo. Ao mesmo tempo em que o leitor não consegue se afastar da leitura de Entremilênios, coletânea de poemas de Haroldo de Campos (1929- 2003) organizada por sua viúva, Carmen de P. Arruda Campos, o livro parece feito sob medida para ser fruído com vagar, de modo a permitir a pesquisa e a releitura dos diversos poetas a que o autor, em sua impressionante erudição, alude nas páginas da obra. A poesia de Haroldo de Campos é melopaica, musical, mas se dobra ao jogo logopaico, de ideias entre as palavras - para usar a terminologia cunhada por Ezra Pound (1885-1972) -, além de ser atraída a cruzar as fronteiras das linguagens. Entremilênios explora as múltiplas facetas do discurso poético verbal: plasticidade, na seção Pinturas Escritas / Escritos-pinturas; potência argumentativa da narração, como em Musa Militante; versos de circunstância, evocados na terceira parte, e a releitura de mitos clássicos, nas seções seguintes. Trata-se de uma metapoesia, inovadora, pluri-idiomática e cultural. A última seção, Terceiras Transluminuras, reúne traduções de autores diversos no tempo e no estilo. Elas são concebidas por Haroldo - um dos expoentes do concretismo, ao lado do irmão Augusto de Campos e de Décio Pignatari - como transcriações por permitirem maior liberdade combinatória de versos e sonoridade. Entre os autores traduzidos por ele estão Homero, Jorge Guillén, Dereck Walcott, Goethe, Giosué Carducci, Maurice Scève, Arturo Graf, Giovanni Pascoli, Gabriele d?Annunzio, Gottfried Benn e Mario Luzi, que têm em comum textos sobre o périplo de Odisseu, literal ou metaforicamente. Entremilênios também traz uma poesia que conversa com a produção contemporânea e que, ao mesmo tempo, elege uma tradição histórica - um paideuma. Haroldo define os poetas aos quais se refere como cisnes, cygnus/signum, "no seu canto último já conversos em mitemas/ cisnencantam-se"; entre eles, João Cabral de Melo Neto, Mallarmé, Baudelaire, Stefan George e Néstor Perlongher. Artífice do jogo com as palavras, Haroldo também dedica poemas aos pintores, como o que fez para o seu contemporâneo Sacilotto: "o deslumbre da luz aurificada/ rebate-se nessas seteiras como em/ buracos negros...", escreve o poeta na seção Pinturas Escritas / Escritos-pinturas. Seu título já diz sobre esta que é uma de suas preocupações formais: a exploração das metáforas dos pintores e da materialidade e suportes da arte. Haroldo de Campos é referência maior por ter aberto as portas do século 21 ainda na década de 50 do milênio que passou. O poeta operou no tempo mítico: "O anjo e a gárgula se defrontam/ do mais fundo/ dos séculos a voz do sábio melancólico/ soa ainda/ ressoa/ ainda/ como antes/ no entrecéu do porvir/ que sibila seu enigma" - dizem os versos do poema 2000. Além da criação e do estudo de literatura comparada, Haroldo desenvolveu na teoria e na prática uma obra que dialogou com a filosofia semiótica de Charles Sanders Peirce, a pesquisa dos formalistas russos e da vanguarda europeia do final do século 19 e início do seguinte, aportando no terceiro milênio. É do vigor experimentalista que surge o aspecto plurilinguístico da poesia haroldiana, desafiando acordos ortográficos com a criação de palavras e pontuação (constelação) mallarmaica, desobedecendo aos padrões lineares. Poucos conheceram como Haroldo de Campos a visualidade da escrita - gráfica e ideogramática, com transcriações de poemas chineses e japoneses - ou se aprofundaram como ele na épica humana (verteu seções da Bíblia - o Eclesiastes, por exemplo - e bateu à porta do Mefistófeles goethiano). Como autor de vanguarda, co-traduziu passagens do "impossível" romance Finnegans Wake (1939), de James Joyce; debruçou-se na poética russa ao traduzir Anna Akhmatova (1889-1966); e finalmente aportou em Ítaca, topos de metaforização predominante em Entremilênios. Através dos mitos universais, sobretudo o de Ulisses, seus poemas incrustam-se como topázios contra o sol na máquina do mundo das junções e partições vocabulares e cortes abruptos de versos. Das cinco seções de Entremilênios, duas são dedicadas ao astuto Ulisses, ou Odisseu, que, com sua técnica, arrebatada no vórtice marinho das sinestesias haroldianas, venceu a sedução pelo canto das sereias. Lendo a Ilíada contém poemas de comentários à viagem de Odisseu, à Guerra de Tróia, a seus heróis e a seres que exsurgem ao marulhar melódico dos versos: "(...) o mar agora/ muda de anil a/ violeta roxo-fogo vinho/ sob a couraça de cobre/ resplendente/ do urânio-céu - //soprando os retorcidos// búzios acode uma/ tropa de tritões/ hirsutos de espuma:// acre// sanha de luxúria/ respira no ar/ vermelho". Os poemas dessa odisseia ainda trazem ninfas fecundadas por "angiospermas" de flores mediterrâneas, que exalam salitre e maresia - alegoria do tempo narrado, do "anonim?homem/ Odisseu o Não-Nome/ o Nenhum-Nome". Mônica Rodrigues da Costa, jornalista, professora de pós-graduação em cultura e jornalismo, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é autora, entre outros, de Era Tudo Sexo (Maltese) Trecho A MUSA NÃO SE MEDUSA I a musa não se medusa: contra o caos faz música (...) - onde houver ranger de dentes e pranto - agora a mão que pinta e o som do canto do homem humano (...) II da mão que pinta da garganta que canta - onde foram cárceres nasça o espaço comunal da paz compartilhada - da arte: gesto (pintura) ou (poema) fala: que se comparte

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