O poder de ridicularizar

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Por Lúcia Guimarães
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Não é sátira. Nem crítica mordaz. Nem irreverência. Nem tampouco baixaria. É snark. O nome da criatura inventada por Lewis Carroll em A Caçada ao Snark foi sendo apropriado pela linguagem coloquial e hoje o Urban Dictionary (Dicionário Urbano) já conta 27 definições para a palavra, sempre negativas. Snark é o título do novo livreto de David Denby, autor de Grandes Livros e crítico de cinema da revista New Yorker. Para dar um panorama do que chama de República do Snark, Denby utiliza sete capítulos e o diagnóstico parece sensato. A criatura nasceu da confluência de mídias contemporâneas, das formas híbridas de jornalismo. Num ambiente onde não entreter é um pecado capital, muito mais grave do que desinformar. O snark tem sua dívida com George W. Bush. Diante da impotência coletiva em expor o retrocesso moral, cívico e político dos oito anos da era Bush e em vista da generosidade do próprio ex-presidente como fonte de ridículo, divertir-se à custa dos outros tornou-se um passatempo nacional. É importante distinguir a sátira letal da nova geração de comediantes como Jon Stewart e Stephen Colbert. Eles não são praticantes de snark. Cada um à sua maneira, eles podem atirar numa mosca com uma Uzi, esticar a corda da irreverência tolerável, mas a sua guerra é pela transparência do poder. O snark, como lembra David Denby, não tem o menor interesse na virtude cívica. Seu triunfo vem do poder de ridicularizar. Quando um eleitor gritou para Hillary "Passe as minhas camisas!", ele não estava sendo snarky. Estava se revelando um mentecapto primitivo e inseguro. E quem epitomiza a República do Snark de David Denby? Sinto informar, Maureen Dowd. A editorialista do New York Times merece um capítulo no livro de Denby que adianta: "Maureen Dowd tem ritmo, timing, um ouvido extraordinário, uma memória impressionante para detalhes culturais estranhos. Ela é uma aforista brilhante e consegue dizer em poucas palavras o que outro jornalista conseguiria em vários parágrafos." A reputação de Maureen Dowd é para mim um exemplo perfeito do que se perde em tradução. Sua coluna é uma das mais lidas do Times e não deixo de consultá-la regularmente. Mas, quanto mais ela afia seus dardos verbais, mais me sinto envolvida num exercício aeróbico comandado pelo melhor trainer. Vou concordar com Denby quando ele afirma que o apetite de Maureen pelo ridículo só é rivalizado pelo apetite pelo poder dos políticos que ela transforma em palhaços. Como argumento pelo que ele considera uma mistura de malícia e ingenuidade, Denby volta ao período da disputa da eleição entre Al Gore e George W. Al Gore, como sabemos, é candidato ideal a objeto de snark. Ele é um nerd e passou anos como solitário defensor daquilo que até Paris Hilton considera hoje relevante. Mas quem pesquisar as colunas de Maureen sobre Al Gore, cuja Presidência dos Estados Unidos foi roubada numa das mais vergonhosas decisões da Suprema Corte, descobrirá um santarrão egomaníaco. No dia 10 de dezembro de 2000, lembra Denby, pouco antes do discurso de concessão de Al Gore, Maureen previu que ele ia "sacrificar a Presidência que ele insiste em ter ganhado e sugerir outra votação que ninguém deseja". O discurso de fato, no dia 13 foi um exemplo de graça sob pressão, de sacrifício pelo bem coletivo. Oito anos e tantas tragédias depois, gostaríamos que a equivocada editorialista estivesse correta pelo menos na disposição de Gore de brigar pelo respeito à eleição. E como Maureen é inteligente demais para não ter percebido, logo no começo do mandato de Bush, para onde ia o país, sua penitência por ridicularizar Gore incluiu comentários jocosos sobre sua obsessão com o aquecimento global e era da informática. A ingenuidade a que se refere Denby vem do lugar insustentável que o praticante do esporte reserva a si mesmo. Se todo político é corrupto, seja Hillary Clinton, por querer ser a primeira mulher presidente, ou Obama por ousar desafiar a tradição com sua inexperiência, o snarker supõe que está denunciando a perda de sua utopia. O snark é o dardo que vai promover o bebum atirador num bar. O alvo é qualquer pessoa que ousar se destacar com ou sem mérito. E a plataforma de lançamento é o elenco da mídia, insegura com sua perda de prestígio, ansiosa por atenção. Com a derrubada da hierarquia do acesso ao público, já que qualquer um tem a capacidade tecnológica de lançar um programa de TV de casa, sem tirar o pijama, a atenção coletiva se estilhaçou em tantos cacos que os leitores do snark que afirma seu poder, como na página editorial do melhor jornal do mundo, sentem-se consolados com a nudez do rei. E confundem a risadinha com o poder de depor o monarca.

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