O pintor da paisagem musical americana

Um outro Henry Mancini volta em CDs que permitem reavaliação de sua obra

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

O sucesso comercial muitas vezes obscurece a real dimensão de um músico. É como se sucesso não pudesse rimar com qualidade artística. Até pode, embora raramente isso aconteça. Quase sempre as inevitáveis concessões acabam por levar talentos promissores à riqueza material e ao naufrágio artístico. Os iluminados, no entanto, conseguem se equilibrar na corda bamba das exigências da indústria cultural e ainda assim construir obras dignas de estudo não apenas pelo lado dos chamados "cultural studies", mas por seus atributos musicais. É possível que o caso mais emblemático desta situação ambígua seja o do compositor e arranjador Enrico Nicola Mancini (1924-1994). Henry Mancini é mais conhecido como autor de temas que todo mundo conhece, como Moon River, Two for the Road, Passo do Elefantinho e Days of Wine and Roses, mas seu perfil criador vai bem mais longe do que isso. É o que demonstra, num magnífico CD recém-lançado no mercado internacional, o saxofonista Ted Nash, 48 anos, ex-integrante da orquestra do Lincoln Center liderada por Wynton Marsalis. The Mancini Project (Palmetto Records) já nasce clássico. Seu pai, Dick, trombonista, e o tio Ted, saxofonista, trabalharam intensivamente nas orquestras de Mancini. Por isso, o tributo é particularmente comovente. Ted, ainda menino, foi ao estúdio levar um sax-barítono para o tio e trombou com o próprio Mancini. Viveu de perto, portanto, aqueles gloriosos tempos. Numa dessas coincidências bem-vindas, a RCA alemã recoloca em circulação uma caixinha com 5 CDs que explicam musicalmente as razões que fizeram de Henry Mancini um dos mais populares compositores de trilhas sonoras para o cinema, um mestre na composição de belíssimas canções e um jazzman consumado. Ela contém as trilhas de Bonequinha de Luxo, Arabesque, Pantera Cor-de-Rosa, das séries de TV Peter Gunn e Mr. Lucky e de sua única gravação de jazz autônoma, Combo. Assim, pelas lentes da família Nash, é possível penetrar nos segredos e avaliar corretamente a obra deste músico de fabuloso talento, rebaixado pela crítica internacional ao nível de um grande compositor de temas, mas medíocre compositor de trilhas sonoras. Em quarteto, Ted Nash faz das canções mais conhecidos meras vinhetas para surpreendentes vôos improvisatórios sobre temas obscuros porém de grande qualidade: na balada Dreamsville, de Peter Gunn, Nash combina uma introdução lenta com o trio e segue improvisando maravilhosamente apenas com contrabaixo e bateria a secundá-lo; Nash, no sax-alto, passeia por Lujon, que os conhecedores consideram a composição mais perfeita de Mancini; em Something for Nash, incluída em Blind Date, de 1987, e composta para seu pai, Ted sopra a flauta emocionado. Cheryl?s Theme, feita para Sunset em 1988, é um duo de sax-alto com piano. As minhas preferidas, no entanto, são Two for the Road, numa calma e intensa leitura; e Experiment in Terror, tema modal do filme homônimo de 1959, pouquíssimo falado e cuja trilha é da maior qualidade. INJUSTIÇADO, MAS BEM PAGO Pouca gente escreveu sobre Mancini após sua morte em 1994. Não houve praticamente nenhuma crítica mais séria e profunda. Mas ele ganhou 4 Oscars, 20 Grammy Awards e compôs a trilha de cerca de 80 filmes. "Esta relativa indiferença não é surpreendente quando se considera a sua recepção crítica entre os estudiosos da música de filme", escreve Jeff Smith, num artigo fundamental, incluído no volume coletivo Music and Cinema (Wesleyan University Press, 2000). "Mancini é encarado quase sempre como talentoso songwriter, porém compositor de trilhas limitado." Um erro que mesmo seus defensores, como Donald Fagen, cometem: "Sua influência deriva de seu papel como popularizador do ?fake jazz?. Sua música ainda está presente na paisagem sonora da cultura popular contemporânea, mas não na forma respeitável da música de cinema, e sim nos comerciais de tv, muzak, etc". Numa frase: os críticos de música de filme o viram como compositor-símbolo do declínio das trilhas sonoras que despencaram num comercialismo barato. E Mancini é ironicamente festejado como king of the trade. Um monstruoso erro histórico de avaliação, pois julga Mancini a partir de premissas falsas. De um lado, a partir do padrão de trilhas sonoras estabelecidas pela primeira geração dos compositores de Hollywood, constituída de europeus emigrados nos anos 30/40. Nomes como Dmitri Tiomkin, Max Steiner e Bernard Herrmann eram com certeza geniais, mas bebiam no vocabulário da música clássica sinfônica do século 19. De outro, o do jazz, como bem lembra Gene Lees, parceiro de Mancini e crítico, não se deve perguntar, como os puristas dos anos 50/60 repetiram incansavelmente, o que Mancini fez com o jazz, mas sim o que ele fez pelo jazz, mantendo-o vivo e conquistando novos círculos de audiência por meio de novos canais como a TV e o cinema, numa fase em que Elvis e os Beatles pareciam ocupar todos os espaços. Os fatos são cristalinos. Mancini inaugura a dinastia dos compositores de trilhas sonoras que olharam para a riqueza da música norte-americana. E o que havia de mais consistente, do ponto de vista musical, naquele momento? O jazz das big bands, já decadente, mas ainda atuante; e o das orquestras de estúdio, como a do injustiçado Billy May. Ora, Mancini estudou com Max Adkins, o mesmo professor de Billy Strayhorn, compositor-arranjador alma gêmea de Duke Ellington. Conheceu o major Glenn Miller quando serviu ao exército na Segunda Guerra. O jazz dos anos 35-45 foi seu berço sonoro, e nele o músico embalou-se até o fim da vida. Mancini tinha o talento específico para preencher as expectativas do momento artístico e econômico que a indústria do cinema vivia na virada dos anos 50/60. Os grandes estúdios puseram olho gordo no mundo da música gravada: as vendas tinham triplicado entre 1955 e 1959 e o negócio já representava meio bilhão de dólares anuais (dólares dos anos 50, bem entendido, o que significaria muito mais hoje). As coincidências são impressionantes, ou melhor, mais do que meras coincidências: no início de 57 a Paramount comprou a Dot Records; em seguida, Twentieth Century Fox, Warner Bros., Columbia e United Artists montaram gravadoras próprias. A ordem era transformar os discos de trilhas em novas fontes de arrecadação paralelas à bilheteria propriamente dita. A pressão por trilhas sonoras comercialmente exploráveis começou aqui - e resultou numa série de mudanças nas práticas dos compositores em Hollywood. Foi neste clima que Mancini estreou. E não no cinema, mas um degrau abaixo, no das séries de TV. Despedido do estúdio onde pertencia ao staff de arranjadores, ele cortava o cabelo quando o cidadão ao lado, Blake Edwards, convidou-o para compor a trilha de uma nova série de TV, Peter Gunn. Corria o ano de 1959. Captando no ar as novas exigências da música de cinema e TV, Mancini levou para a empreitada toda a sua paixão pelo jazz e pelas big bands. Não clonou nenhuma delas, porém. Usou seu vocabulário. Grande melodista, adotou ali o padrão que faria imenso sucesso nas décadas seguintes: compunha entre 8 e 10 temas dignos de qualquer um dos grandes songwriters da era de Tin Pan Alley; escolhia um instrumento solista como destaque timbrístico que dava o toque de originalidade. O restante ficava por conta dos dotes de improvisadores dos músicos. O CD com a trilha de Peter Gunn não é de trilha. Pode ser ouvido como uma excelente gravação, em termos absolutos. E esta é a maior qualidade de Mancini. Ele pegava os temas escritos para a trilha, originalmente ouvidos apenas em fragmentos, e os desenvolvia inteiramente na gravação. Até então os discos de trilhas apenas as transplantavam para o disco. E - óbvio - filme e disco são objetos de natureza completamente diferente, o que só Mancini parecia enxergar. O caso de Peter Gunn foi emblemático. Mandaram-no procurar o saxofonista west coast Shorty Rodgers, que então vendia em média 80 mil cópias de suas gravações. Este recusou-se a gravar o disco com as músicas da trilha. "É sua cria; grave você mesmo." O LP estourou imediatamente. E a partir dali Mancini viveu dupla condição: festejado compositor de trilhas de cinema e também - ou mais - festejado vendedor de discos. Peter Gunn vendeu mais de 2 milhões de cópias. As trilhas posteriores não ficaram longe disso. A longa parceria de 26 filmes com Blake Edwards culminaria num ótimo musical que junta as pontas de Hollywood com a Broadway: Victor Victoria. É curioso que o único CD da caixinha da RCA que não é de trilha soe exatamente igual aos das trilhas. Combo, gravado em 1960, no início da fase gloriosa de Mancini, traz um grupo de onze notáveis jazzmen. Participam, além dos já citados parentes de Ted, o trompetista Pete Condoli, um dos mais íntimos amigos de Mancini; o imenso saxofonista Art Pepper, numa de suas escapadas de San Quentin, aqui tocando clarineta; Larry Bunker na marimba e vibrafone; e o baterista Shelly Mane. No repertório, grandes temas de Mancini, além do maravilhoso Moanin, um funk do pianista Bobby Timmons. Aqui Mancini aplica seu esquema como nas trilhas e escolhe como instrumento-rei o cravo turbinado tocado por Johnny Williams. Mas foi em Bonequinha de Luxo, cuja vedete instrumental é a gaita de boca, que Mancini foi obrigado a colocar todo o seu talento e capacidade de criar mesmo nas maiores adversidades: tinha que compor uma canção com apenas dois ou três acordes, fácil de ser cantada por uma Audrey Hepburn, que não era nem cantora e tinha precário domínio do violão. Pior: concorria ali com ninguém menos do que Richard Rodgers, o preferido do chefão do estúdio, que a contragosto deu-lhe a chance de tentar compor algo. Ele escreveu uma valsinha. E levou-a a Johnny Mercer, que cometeu um dos maiores erros da história da canção dizendo-lhe: "O tema é bom, mas não tem futuro fora do filme. Quem vai querer gravar uma valsa?" Todo mundo detestou Moon River, até o chefão da Paramount, Martin Rackin. Só ficou no filme por insistência de Hepburn, que escreveu o seguinte: "Um filme sem música é um pouco como um avião sem combustível. Sua música nos fez a todos decolar e voar a grandes alturas". Inesperadas e sábias palavras. Naquele ano, Mancini teve, em dois Oscars - de melhor trilha e de melhor canção com Moon River -, a constatação de que era o único a combinar com eficiência e gênio as exigências industriais dos estúdios de cinema com a criação de música de qualidade. Pois ele derrubou, numa penada só, ao menos dois dos sagrados dogmas até então vigentes no reino da música para cinema. Pela ordem: a melhor música de cinema é aquela que não é notada; a música dos filmes só funciona nos filmes.

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