O peso das coisas que não se diz

Cadernos de anotações recuperam processo criativo de Marguerite Duras

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Da vida pessoal da escritora francesa Marguerite Duras (1914-1996), um dos grandes nomes do nouveau roman ao lado de Alain Robbe-Grillet (1922- 2008), pouco resta a revelar, considerando que ela mesma se encarregou de contar os episódios mais marcantes de sua experiência existencial em livros como Barragem Contra o Pacífico, A Dor e O Amante. Neles, o silêncio e o peso das coisas não ditas tornam-se marcas indeléveis dessa literatura em que real e ficcional se confundem. Provas dessa interpenetração de planos são os textos guardados pela autora em quatro cadernos de diferentes cores com anotações e esboços feitos entre 1943 e 1949, todos eles esquecidos durante anos no interior dos armários azuis de sua casa em Neauphle-le Château, antiga construção em pedra onde ela escreveu O Vice-Cônsul. Reunidos num único volume, Cadernos da Guerra e Outros Textos (tradução de Mário Laranjeira) chega agora às livrarias, permitindo atestar como os livros anteriormente citados mudaram desde os primeiros rascunhos. Ao herdar esses cadernos, o Institut Mémoire de l?Édition Contemporaine (Imec) entregou-os à análise de Sophie Bogaert e Olivier Corpet, dois especialistas na obra de Duras. A dupla fez uma seleção criteriosa, de modo a revelar ao leitor os caminhos que conduziram esses manuscritos arquivados para a ficção. Embora constituam um conjunto homogêneo, eles diferem em propósito. O primeiro deles, Caderno Rosa Marmorizado, o mais longo dos quatro, é uma narrativa autobiográfica sobre a infância e adolescência de Marguerite, seguida dos primeiros esboços de Barragem Contra o Pacífico e A Dor. Os dois cadernos seguintes, Presses du XXe. Siècle e Caderno de Cem Páginas são basicamente dedicados à construção de A Dor, um dos trabalhos mais tocantes da escritora, em que ela imortaliza a figura do marido, Robert Antelme, membro da Resistência preso durante a guerra e enviado pelos nazistas ao campo de Dachau. Já o último caderno, o Bege, traz os esboços dos romances O Marinheiro de Gibraltar, filmado por Tony Richardson, e Madame Dodin, em que, ironicamente, Duras interrompe a narrativa para pedir ao leitor que não a envolva nessa história - advertência inútil, considerando os traços autobiográficos do romance. Além desses quatro cadernos de guerra, o livro reúne dez narrativas que, marcadas pela sintaxe clássica, já revelam traços de uma escrita sintonizada com a modernidade narrativa e trazem igualmente referências autobiográficas, tocando em lembranças dolorosas como a do primeiro filho natimorto, o primeiro amante, a deportação e volta do marido. Nessa última parte, destaca-se, porém, um texto aparentemente sem conexão com sua vida. Trata-se de Os Pombos Roubados, chocante relato sobre uma idosa que passa a ser rejeitada pelos parentes quando começa a roubar comida à noite. Ignorada pelos vizinhos do vilarejo e com uma fome ancestral, ela se resigna a ficar diante do fogo sem dizer mais nada, tornando-se cinzenta como seu velho companheiro. Definha até a morte. Como em Marguerite Duras a primeira pessoa se dissolve invariavelmente na terceira, é quase insuportável a leitura dessa desesperada vigília diante da morte, quase tanto como a da angústia da autora à espera do retorno do marido, que julga morto, em A Dor. O trauma da espera de Robert Antelme, finalmente libertado em 1945, é relatado em detalhes na obra, assim como o sofrimento pela perda de seu primeiro filho e aquele provocado por sua mãe tirana, que praticamente a atirou à prostituição, após perder tudo o que investiu numa fazenda de arroz na Indochina, então colônia francesa. Essa história é contada em O Amante e reaproveitada em fragmentos de O Vice-Cônsul. Marguerite é apresentada a um rico chinês quando ainda é uma adolescente, para arrancar do amante o dinheiro que vai pagar as drogas consumidas pelo irmão mais velho. Recebendo como retribuição ofensivos palavrões e tapas - dele e da mãe -, a escritora nunca se reconciliou com o núcleo familiar, que julgava fonte de toda paranoia e infelicidade. Duras, no Caderno Bege, confessa que não sente especial conforto em ser mãe. Ao contrário. Diz que mede todo o horror da possibilidade de tal amor. "A maternidade nos torna boas, diz-se. Bobagem. Desde que o tenho, tornei-me má", escreve ela em 1947, após o nascimento do segundo filho, o único sobrevivente, Jean Mascolo. É difícil admitir tanta honestidade e, especialmente, a maneira racional como a autora enfrenta a notícia da morte do primogênito. Ela conta o episódio em duas versões: num diálogo com a enfermeira do hospital, em que esta revela à mãe que crianças natimortas são cremadas, e num conto. O objetivo parece claro: mostrar como a literatura e a realidade se negam mutuamente. Uma das grandes revelações destes Cadernos de Guerra aparece no chamado Cahier Presses du XXe. Siècle ("Caderno Edições do Século 20"), que deveria ter sido o nome da editora que Duras fundou finalmente com o marido Robert Antelme em 1947, Éditions de la Cité Universelle. Trata-se de um romance inacabado, Théodora, cujo rascunho estava sendo redigido naquele mesmo ano. Há três décadas, a escritora publicou um excerto, na coletânea Outside, sobre essa mulher jovem e amante da liberdade que teria sido deportada como o marido de Marguerite Duras. A autora, que segundo a sua biógrafa Laure Adler chegou a trabalhar para o governo de Vichy durante a Ocupação Alemã, usa mulheres como Théodora talvez para mostrar que não era uma colaboracionista, mas alguém que podia estar trabalhando na função de espiã para a Resistência - como de fato trabalhou, sendo quase presa e deportada pelos nazistas, a exemplo do marido. Outra revelação importante é o ménage à trois vivido depois da guerra com ele e o amante da escritora, Dionys Mascolo, na volta do marido, magro e abatido, do campo de concentração. Duras descreve o corpo do autor de L?Espèce Humaine como o de um homem aniquilado, um morto de quem haviam retirado a identidade. Contudo, Robert Antelme sobreviveu para colaborar com a mulher em adaptações teatrais e ser expulso do Partido Comunista Francês, ao qual também pertencia Marguerite Duras. Esses seus cadernos são ainda úteis para quem quiser ver em construção o estilo seco da roteirista de Hiroshima Mon Amour, o clássico filme de Alain Resnais, representante da nouvelle vague francesa, que acaba de completar meio século.

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