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O país que muda, mas só para os olhos ocidentais

Transformações na sociedade são tema de filmes para exportação

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Há uma história recente da China que vem sendo contada pelo cinema para os olhos atentos do Ocidente. São filmes que fazem o circuito dos grandes festivais (Cannes, Berlim, Veneza), mas estão interditos para os próprios chineses. Há dois anos, quando homenageado pela Mostra de Cinema, Jia Zhang-ke, entrevistado pelo Estado, disse justamente isso. Seus filmes lhe valeram reputação no Ocidente, ganhou prêmios, reconhecimento, mas permanecia inédito em seu país. Com The World (O Mundo) e Still Life (Em Busca da Vida), Zhang-ke firmou-se como cineasta do tempo e retratista das mudanças profundas que fizeram a China avançar milênios em décadas. Com sua ficção sobre a construção da represa das Três Gargantas, Zhang-ke podia até ser considerado reacionário. Afinal, o filme conta a história que sintetiza o drama de milhares de pessoas afastadas de sua terra e jogadas no mundo, após as águas inundarem suas casas. O futuro é irreversível e não adianta chorar. Daqui a um século, ou menos, essas histórias estarão esquecidas e a represa terá cumprido seu papel de suprir a China com as fontes de energia necessárias para se consolidar entre as maiores economias do mundo. Hoje, essas histórias parecem terríveis, mas foi sempre assim. A grande história nunca é contada pelos excluídos. The World é uma obra-prima e seu tema, a globalização. A nova China capitalista construiu esse parque temático com atrações de todo o mundo. O Coliseu, a Torre Eiffel. O público que visita esses locais vê no simulacro - nada mais pós-moderno - um símbolo da pujança do país, mas o parque é só moldura para as histórias de seus funcionários, quase todos desajustados num mundo que, no fundo, os ignora. Homens e mulheres tornam-se descartáveis como objetos. É o mesmo drama dos excluídos em Três Gargantas. O cinema de Jia Zhang-ke busca sempre novas formas de falar criticamente sobre o mesmo tema - a transformação. 24 City, sobre a fábrica que era exemplar sob o maoísmo e demolida para abrigar um condomínio de luxo, reforça essa impressão. A China capitalista herdou o sistema repressivo da China comunista de Mao. Não é só Zhang-ke que passa essa reflexão para o Ocidente. Outro caso interessante é Lou Ye. Há três anos, ele exibiu em Cannes Summer Palace, Palácio de Verão, sobre garota que abandona a família no interior, em busca de uma carreira em Pequim. Na universidade, ela descobre um mundo de liberdade política e sexual que a leva a participar do protesto na Praça da Paz Celestial. Completaram-se, no começo do mês, 20 anos do protesto que culminou num massacre. As autoridades estabeleceram fortes medidas de segurança no local da tragédia, onde a mobilização de policiais à paisana impediu os jornalistas de gravar vídeos ou tirar fotos, enquanto ONGs denunciavam esforços para apagar a lembrança do incidente. Ao incorporar as imagens da Praça da Paz Celestial à sua ficção, Lou Ye incorreu na ira do governo chinês. Seu registro profissional foi cassado por cinco anos. Nessa fase, conseguiu fazer clandestinamente outro filme, que integrou a competição do recente Festival de Cannes. Spring Fever seria polêmico de qualquer forma, por tratar de um par gay. Uma mulher desconfia do marido e contrata detetive para investigar se ele tem outra. Descobre que ele tem outro. Lou Ye filmou a Pequim underground, encontros de gays, shows de drag queens. Filmes sobre homossexuais têm problemas com as autoridades chinesas. O problema de Spring é que Lou Ye nem poderia fazer o filme. Em Cannes, ele protestou: que mundo é esse em que um diretor de cinema não pode exercer a profissão? Spring foi escrito por Feng Mei, que já colaborara com Lou Ye em Summer Palace. Ela é uma das vozes dissidentes na nova China. O prêmio de roteiro que recebeu foi atitude deliberada do júri presidido por Isabelle Huppert para fortalecê-la e, talvez, dar mais exposição a Spring Fever, dentro e fora da China.

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