O novo Brasil do Lula; ou, quantos Brasis no Brasil?

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

Um dos segredos do carisma de Lula é a veemência com que aborda assuntos relevantes para si mesmo e para as vidas que o destino enfeixou em suas mãos. A veemência é um claro sinal de sinceridade. Foi no grito que nos tornamos independentes, e é o berro que mostramos a nossa indignação. Num discurso-aula, pronunciado na reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social na semana passada, ao discorrer sobre seus dez dias de viajem aos países escandinavos e à Espanha, o presidente tocou num importante tema sociológico: as diferenças de imagens de um Brasil falado pelos brasileiros e de um outro Brasil falado no exterior. Afinal, questionou Lula, quantas imagens do Brasil estão contidas no Brasil? Quando os brasileiros falam do Brasil, que figuras sempre aparecem? Quais os traços, por outro lado, de um Brasil visto pelos estrangeiros? Sabemos que a visão interna é muito mais negativa que a de fora. Tudo indica que o presidente Lula finalmente descobriu que o ''''pessimismo'''' é uma dimensão de quem está fora (do País e do governo); ao passo que o otimismo faz parte de quem governa a máquina federal. Essa engrenagem que, pelo menos no caso do Brasil, tem a obrigação de tudo ver e, de modo ponderado, corrigir, equilibrar e compensar diferenças. Por que, questiona Lula, com justa indignação, não podemos ter uma visão positiva de nós mesmos? De onde vem tanta negatividade, mesmo quando vivemos um momento inegavelmente positivo de nossa vida econômica? Muitos de nós vimos ''''o Brasil se acabar de vez''''; outros advertiram que ele estava a um passo do abismo; mas todos nós também testemunhamos esse mesmo Brasil perdido pela corrupção, pelo reacionarismo, pela estupidez da violência autoritária, pela burrice dos radicalismos caolhos, e pelo jogo político que promove a marcha à ré, renascer radioso nas Copas do Mundo em que fomos campeões. Ou nos carnavais em que se obriga a uma leitura do Brasil pela sensualidade, pela feminilidade, pelo canto e pela fantasia. Ou na eleição deste ou daquele candidato que iria, finalmente, salvar a pátria! A questão é que as tão execradas democracias liberais põem em jogo visões competitivas de partidos, idéias e até mesmo de países. Daí a necessidade de separar o País dos erros dos seus governos e de alguns dos seus políticos. Um dado básico das democracias liberais é ter a obrigação de distinguir o que é bom para ''''o partido'''' e o que é fundamental para o Brasil. Quando a circulação de imagens opostas, contraditórias, pessimistas, otimistas ou simplesmente indiferentes são proibidas, fazemos face aos regimes nos quais somente uma imagem pode ser veiculada. Por isso a imprensa livre é tão importante nas sociedades que se querem livres e igualitárias. Foi isso que o presidente descobriu. É óbvio que o Brasil que está na cabeça do presidente não é o mesmo País que se encontra na dos seus opositores e na de alguns dos seus companheiros quando eles pregam o fim ''''disto tudo que aí está'''', ou recomendam a eliminação dessas ''''elites'''' movidas a ''''desfaçatez'''', esquecidos que eles são, hoje, parte e parcela dessa elite. Eu entendo bem o sofrimento e a irritação do presidente. Em 1970, em plena época de chumbo, descobri a riqueza sociológica de estudar o Brasil pelos seus rituais e escrevi sobre o carnaval e o ''''você sabe com quem está falando?'''' como imagens do Brasil pelos brasileiros. O carnaval seria o mito das camadas subordinadas e o ''''você sabe com quem está falando?'''', o rito autoritário de uma incômoda igualdade que perturba ''''A Cabeça do Brasileiro'''', como faz prova a cabal e inteligente demonstração quantitativa do sociólogo Alberto Almeida, no livro que escreveu com esse título provocador. É essa ''''cabeça'''' pessimista que o presidente Lula, com sua percepção de ex-pobre e ex-líder sindical, descobre e denuncia. Presidente, eu cansei de ser acusado de reacionário só porque estudei instituições como o carnaval, a malandragem, os renunciantes (tipo Antônio Conselheiro), o futebol, o jogo do bicho, a comida, a música popular e não dediquei nenhuma linha pseudo-marxista sobre a chamada ''''classe operária'''' ou sobre os ''''camponeses'''', e não podia repetir o refrão pessimista. Pelo contrário, tal como o senhor, eu também entendo que criticar não impede enxergar um Brasil alegre, sagaz e sábio. Afinal, como constatamos, o Brasil tem muitas imagens. Realmente, lido como uma totalidade, o Brasil é muito mais complexo do que pensam alguns dos seus críticos mais ferrenhos e radicais. Mas visto através de algum ponto, ele revela múltiplas realidades que cada um pega como pode e quer. A injustiça seria proibir a troca de lado, esse exercício que conduz às gloriosas carnavalizações e ao exercício da liberdade, essencial à perspectiva democrática. Felizmente - que belo e generoso milagre! -, um petista conseguiu realizar esse famigerado exercício. Ainda que fosse preciso chegar à Presidência da República para tanto.

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