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O mundo revelado no palco de Pinter

A política começava, em suas peças, no quarto escuro dos medos humanos

Por Ariel Dorfman
Atualização:

Foi no Chile, no começo dos anos 60, que vi pela primeira vez uma peça de Harold Pinter. Foi quando e onde ouvi falar pela primeira vez de Harold Pinter, morto na semana passada, aos 78 anos. Foi onde, quando e como algo na minha vida e obra mudou para sempre. O mais extraordinário daquela hora durante a qual assisti The Dumb Waiter em espanhol foi como incrivelmente familiar a peça era, praticamente latino-americana em sua familiaridade, apesar de ter sido escrita originalmente em um inglês elíptico de um autor de Hackney. À medida em que mergulhei em sua obra nos anos seguintes, Pinter tornou-se insubstituível, uma inspiração única. Ele me mostrou como a arte dramática pode ser lírica, poética, simplesmente ao se misturar aos ritmos enterrados do discurso cotidiano. Ele me sussurrou que normalmente falamos para esconder, e talvez evitar, o que realmente pensamos e sentimos. Ele não tinha medo do silêncio ou de deixar seus personagens caírem na hesitação ou na inescrutabilidade. Ele entendia que se você estica os limites da realidade, encontra sob ela uma outra dimensão - fantástica, absurda, delirante. Ele sugeriu que as piores alucinações do medo não estão imunes ao pêndulo do humor. Mas todas essas lições do artesanato dramático são pálidas perante aquilo que ele me ensinou sobre a existência humana e sobre - será que ouso usar a palavra? - política. Desde aquela primeira peça, senti que Harold Pinter estava desvendando um mundo profundamente político. Não diretamente (como aconteceria mais tarde, a partir dos anos 80), no sentido de que suas criaturas seriam afetadas por aqueles que as governavam. Não, esses produtos da psique de Pinter, pelo menos nos anos 60, não estavam preocupados em disputar a arena pública, não tinham interesse em mudar o mundo, para pior ou melhor. Eles eram, ao contrário, cidadãos tristes e intimistas, obcecados apenas com sua sobrevivência. E, ainda assim, ao nos aprisionar dentro da vida daqueles homens e mulheres, Pinter revelava as muitas gradações e degradações do poder com uma profundidade que eu nunca havia percebido em outros autores que supostamente se dedicavam a examinar e denunciar contingências políticas. Todo poder, toda dominação e libertação começava ali, naqueles quartos claustrofóbicos onde cada palavra conta, cada pequena expressão precisa ser contabilizada, paga em alguma moeda secreta de esperança ou sofrimento. Você quer livrar o mundo, a humanidade, da opressão? Olhe para dentro de você, olhe a seu lado, olhe para a violência escondida da linguagem. Nunca esqueça que é na linguagem que a violência, a crueldade exercida sobre o corpo, começa. Dois homens esperando em um porão para mater alguém. Uma velha reivindicando um quarto abandonado. Uma celebração de aniversário interrompida por intrusos. Uma mulher com medo de ser despejada. Um filho que retorna à sua família disfuncional com uma mulher enigmática. Cenas de traição que poderiam ocorrer em qualquer lugar do planeta, corporificações de uma paisagem vasta e inquietante de medo, as condições precárias habitadas por boa parte da humanidade contemporânea, a narrativa negligenciada do século 20. Talvez fosse natural que eu projetasse nessas histórias nascidas na Inglaterra as sombras perturbadoras da minha América Latina. Quantos Davies cruzaram as ruas de Santiago? Quantas peruanas temiam e desejavam aquele visitante de seu passado? Quantos assassinos esperavam nos porões da Argentina de ontem? Quantos nos esperariam nos porões da São Paulo de amanhã? E como contar essas histórias, respeitando a incerteza daquelas existências no limite da extinção, arrancando sem misericórdia as máscaras forjadas a partir das vidas que criamos para nós mesmos e, ao mesmo tempo, ser gentil com essas vítimas de suas próprias desilusões? Pinter sabia como. E eu fui assombrado de tal maneira por esse conhecimento, fiquei tão obcecado, que meu primeiro livro foi uma análise de suas peças. Muitos anos depois, quando comecei a escrever para teatro, foi a sua influência, a sua estética, que me guiou. Na época em que dediquei A Morte e a Donzela a ele, já havíamos nos tornado próximos, eu, ele e nossas mulheres, Antonia e Angélica, mas todos os nossos encontros, jantares e saídas foram realmente a continuação de um diálogo iniciado muito antes que eu fosse honrado com sua amizade. Seus personagens podiam não se comunicar uns com os outros, sem dúvida perdidos no pântano de suas próprias palavras e solidão, mas Pinter era diferente. Ele conversou comigo com clareza sem igual, desde o primeiro dia até quando se tornou o autor contemporâneo que sabia como dispersar o terror de minha solidão apenas ao nomeá-la. Agora que ele se foi, eu devo encarar um mundo no qual não posso mais ligar para ele e ouvir sua voz seca, ou sentar com esse meu irmão mais velho e lamentar por horas os novos abusos contra os direitos humanos ou encontrar seu último poema na correspondência. Agora, me resta aquilo que descobri quando pela primeira vez fui envolvido por uma de suas peças, há 45 anos, aquele coração, aquela mente misteriosa com a qual ele continuará a me ajudar, e a tantos outros, a compreender as glórias e misérias de nosso tempo. Nascido no Chile, o escritor Ariel Dorfman é professor da Duke University e autor, entre outros livros, de O Longo Adeus de Pinochet

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