O mundo ordenado de Piza e Mondrian

Gabinete de Arte Raquel Arnaud reúne raras séries de gravuras dos mestres

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Mira Schendel (1919-1988), a grande artista nascida na Suíça e naturalizada brasileira, surpreendeu certa vez sua empregada em estado catatônico diante de uma reprodução de Mondrian (1872-1944). Ao despertar do transe, ela se virou para a pintora e disse: "Dona Mira, eu posso não saber muita coisa, mas sei o que é bonito." Mira costumava lembrar a história para contestar o argumento de interlocutores que defendiam um certo conhecimento diante da obra de arte. Ela pensava o contrário: se o trabalho é visual, não precisa de bula para ser entendido. É claro que informação sempre ajuda, mas, diante de Mondrian, todos têm os mesmos olhos. Essa democracia visual pode ser testemunhada a partir de amanhã, quando o Gabinete de Arte Raquel Arnaud abrir suas portas para mostrar gravuras raras do artista holandês, criador do neoplasticismo (arte essencialmente bidimensional e abstrata), ao lado de obras na mesma técnica feitas por Arthur Luiz Piza, que mora em Paris há 50 anos e é um dos artistas brasileiros de maior reconhecimento internacional. Mira e Mondrian tinham em comum um interesse particular pelo transcendentalismo, cada um a seu modo, sendo o de Mira encaminhado para a fenomenologia. A palavra Deus aparece em vários desenhos e monotipias de Mira e, embora não seja diretamente evocado na obra neoplástica do holandês, as estruturas definidas por linhas pretas ortogonais que criam espaços saturados com três cores primárias (vermelho, amarelo e azul) têm certamente mais que relação formal com o legado da Bauhaus. Explicável: Mondrian, filho de um pastor calvinista, buscou na arte o conhecimento espiritual que a religião não lhe deu. Quando se vê uma série como Pier and Ocean (a da mostra é de 1917) percebe-se de imediato uma tentativa de reordenamento do mundo feito com linhas verticais e horizontais, sendo as primeiras uma representação do porto seguro (o pier) que contém a fúria do oceano representado pela linha horizontal. Esse encontro representa igualmente a unidade dos princípios universais do masculino e feminino, do espiritual e do material, como Mondrian explicaria mais tarde. Assim, parece natural que a gravura da série, que sintetiza sua jornada espiritual, da representação à abstração, domine a mostra. Ela cobre boa parte da produção do pintor, do momento em que se estabeleceu em Paris (1912) até a última fase, marcada pela histórica tela Broadway Boogie-Woogie (1942-1943), que serviu de modelo para a gravura que está na mostra. São dez no total, todas editadas pela marchande francesa Denise René, que organizou a primeira exposição de Mondrian na França e é representada no Brasil por Raquel Arnaud. Paris foi o ponto de mutação tanto de Mondrian quanto de Piza. Foi só pisar na França para Mondrian mudar não só o nome (ele tirou um "a" de Mondriaan) como o estilo - do naturalismo, passou por um breve período simbolista até descobrir o cubismo de Picasso e Braque, também os nomes mágicos que mudariam o rumo de Piza. Impressionando com a fragmentação cubista, ele viu nela uma possibilidade de conhecer o mundo aos pedaços, caminhando no sentido inverso dos expressionistas abstratos americanos, que, na época (anos 1950), exageravam na dimensão dos trabalhos. Piza, marcado pela experiência construtiva, foi trabalhando figuras geométricas em dimensões microscópicas e superou o mestre gravador alemão Johnny Friedlaender, desenvolvendo martelos e cinzéis em diferentes formatos para aplicar a própria técnica nas placas. Algumas gravuras em metal que estão na mostra (L?Inconnue, de 1984, e Manne, feita um ano depois) comprovam como o olhar liliputiano de Piza acabou criando uma obra gulliveriana. Piza tem Mondrian como signo do inatingível. Em novembro, numa entrevista ao Estado, disse que Mondrian "tem uma perfeição tão grande que é difícil imaginá-lo de outra maneira". De fato, é difícil conceber obra mais perfeita que a desta página (Composition Dans le Carreau, foto maior). É um trabalho da maturidade do pintor, do período que definiu seu estilo. Mostra como a composição recusa os limites da tela, quase obrigando o espectador a concluir a obra. Não é esse, afinal, o sentido da religião? Serviço Edições Limitadas de Mondrian e Piza. Gabinete de Arte Raquel Arnaud. R. Arthur Azevedo, 401, 3083-6322. 10/19 h (sáb., 12/16 h). Abertura amanhã

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