O misterioso silêncio dos palhaços

A Noite dos Palhaços Mudos, espetáculo com a Cia. La Mínima, cativa o público com um toque de graça e o enigma do circo

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Por Jefferson Del Rios
Atualização:

A Noite dos Palhaços Mudos, fenômeno de público, tem sua última apresentação hoje. O espetáculo da Cia. La Mínima, tema do cartunista Laerte e direção de Álvaro Assad, esteve sempre lotado com uma divulgação praticamente só boca a boca. O mais engraçado é a redundância de ser apenas espetáculo "engraçado" sobre palhaços. Como dezenas de outros que o espectador deve ter visto na vida. Ou, pensando bem, talvez seja um dos poucos que ele viu ao vivo, fora da televisão. E o curioso é que se trata de uma encenação simples. O circo nas últimas décadas sofreu uma evolução - ou deformação - que o levou os megaespetáculos com canhões de luz, números manipulados por computador, animais (o que, felizmente, começam a ser proibido) e apresentação de artistas alheios ao universo da lona. A pequena montagem em cartaz no Espaço dos Parlapatões coincide com o lançamento (só em DVD) de Palhaços (I Clowns), de Federico Fellini, de 1971, e ignorado até agora no Brasil. O filme poderia ser chamado Il Pagliaci, em italiano, mas o cineasta evitou confusão com a ópera do mesmo nome composta por Giacomo Puccini. O acaso - filme, peça - traz uma aula dessa arte que tem subdivisões. O palhaço nosso conhecido é aquele do pastelão, tropelias, tapas na cara. Já os clowns são bem europeus, usam mímica e de dividem em "brancos", lentos ou melancólicos (pierrôs), especialistas em pantomimas de gestos suaves, contrastando com os "augustos" de nariz vermelho, sapatos enormes e sempre em trapalhadas. É uma divisão sutil, porém histórica (a dupla O Gordo e O Magro tem essa separação.) Os palhaços brasileiros são de latinidade aparatosa. Não há quase espaço para o "branco", que no mundo da ficção podem até ser vagamente ameaçadores (serão tristes ou dissimulados?), como o Carnaval de Veneza e suas máscaras sinistras. Nos anos 50, Hollywood lançou O Maior Espetáculo da Terra, superprodução ambientada no famoso circo Ringling Bross - Barnun and Bailey Circus, onde a polícia procurava um foragido da Justiça. No elenco estelar, encabeçado por Charlton Heston e as belas, Dorothy Lamour, Betty Hutton, havia um astro que não se consegue identificar até o fim, quando o FBI encontra o culpado. É simplesmente James Stewart disfarçado como o simpático palhaço Button. Foi um impacto, porque o clown é o último dos suspeitos, assim como Stewart era ator de papéis românticos. O acaso faz escritores satíricos ou ligados ao teatro de absurdo parecerem, eles mesmos, palhaços de rosto lavado, caso de Eugène Ionesco, com seu nariz de batatinha (e realmente um homem afável, ao contrário do misterioso Samuel Beckett com seu perfil aquilino). O paradoxo visível em A Noite dos Palhaços Mudos é que essa arte, tida como hilariante, algumas vezes pode assustar. Fellini aparece diretamente em I Clowns dizendo que a primeira vez que foi levado ao circo chorou ao ver homens pintados trocando sopapos. O crítico viveu essa experiência, embora em seguida tenha se encantado com o palhaço Lingüiça, do Circo América, e o ter procurado por mais de 20 anos (está sepultado em Araraquara). O texto de Laerte na realidade é um enredo, tema, ponto de partida. Uma figura malvado-divertida (tipo Coringa de Batman) corta o nariz postiço de um palhaço. A lógica manda que ele arrume outro, mas aqui é um caso gravíssimo. Aquele pedacinho de plástico vermelho é o ponto de equilíbrio do comediante (e se o vilão cortou o nariz de verdade?) Todo o resto é o que sabemos, e mesmo assim tem graça (numa sessão, uma jovem ria tanto que parte da platéia ria por ela). O elenco tem noção de ritmo cômico. Domingos Montagner, Fábio Espósito e Fernando Sampaio sabem lidar com essa relojoaria imponderável do riso, que a direção de Álvaro Assad conduz. Então, é isso: último dia para um reencontro com o velho circo que, no momento, merece uma bela exposição na Galeria Olido, da Secretaria Municipal da Cultura. O circo tem o seu mistério. O escritor Henry Miller, tão transgressivo, fez um texto poema para ele: Um Sorriso ao Pé da Escada, que talvez um dos "parlapatões" venha a encenar. Atrás do carmim, do alvaiade está o homem que mereceu versos de Paschoal Carlos Magno - um dos patronos do teatro brasileiro - "Arranca a máscara da face, Pierrô/ para sorrir do amor/ que passou." Joubert de Carvalho musicou e Silvio Caldas gravou. Antigo? Não. Está na Praça Roosevelt apenas hoje. Serviço A Noite dos Palhaços Mudos. 50 min. 12 anos. Espaço Parlapatões (98 lug.). Praça Roosevelt, 158, centro, 3258-4449. Hoje, às 21 h. R$ 20

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