O mistério da organização da vida

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Por Ignácio de Loyola Brandão
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No carnaval, um grupo de amigas, todas dos tempos do Gracinha (para quem não sabe, é o Colégio Nossa Senhora das Graças no Itaim), com amigos e namorados, desceu para Picinguaba, no litoral norte. Tinham uma casa emprestada e estavam se divertindo. Muito sol, muito protetor, os namorados por perto, andar na praia, pegar onda, tomar sorvetes e caipiroscas que ninguém é de ferro e baladas à noite. Soltos, relaxados, curtiam o sol, quando aparecia, quando vinha o tempo nublado ficavam em casa. Preparavam as comidas entre eles mesmos, não era uma dessas turmas consumistas. Alem do mais, nesses períodos, padarias, bares, quiosques, lanchonetes, restaurantes, supermercados ficam superlotados. Para eles já bastara o congestionamento na descida, inevitável. Mas quando se tem 25 anos, curte-se de tudo. Eu mesmo, que hoje procuro conforto, certa vez, em Ilhabela, há décadas, com um grupo invadi um hotel em construção próximo ao aeroporto e dormi na cozinha em cima do fogão industrial, sobre uma chapa de ferro gelada, dura. E como dormi. Determinado dia, a turminha de Picinguaba teve a ideia de passar para a Ilha das Couves. Foram de barco, tudo é aventura. A manhã transcorria serena quando Maria Rita, uma das jovens, sentiu uma picada forte na coxa esquerda. Bateu a mão, imaginou que fosse uma formiga, continuou a tomar sol. Não passou um minuto, ela sentiu os lábios incharem. O inchaço prosseguiu, tomou o rosto, os olhos começaram a fechar, como os de um boxeador esmurrado. As mãos se contraíram, Maria Rita se ergueu e tentou falar. Não conseguia. Ela sentia ainda que sua garganta começava a apertar também, ficou ansiosa. As amigas Marilia e Alice correram pela praia aos gritos: - Tem um médico? Tem um médico? Um senhor que caminhava em direção à água, máscara de mergulho nas mãos, parou: - Sou médico. O que há? - Nossa a amiga está passando mal! Muito mal! Corra! Eram dois passos. O médico olhou, perguntou, Maria Rita conseguiu dizer que sofrera uma picada e começara o inchaço. A essa altura, as duas mãos estavam crispadas, ela respirava com dificuldade. O médico, num salto correu à barraca dele, apanhou um antialérgico. A jovem não soube dizer se foi um comprimido enfiado goela abaixo, ou se foi injeção. O inchaço prosseguia, gradual e o médico preocupava-se com a garganta. Se fechasse a glote, ela estaria perdida. Ele contando os segundos, olhando a reação. Minutos de suspense, todos calados, o homem nervoso, segurando a mão de Maria Rita que, apavorada, continuava a respirar mal. Sentia-se sufocada. Talvez o medo e a ansiedade complicassem a situação. Então, as mãos começaram a voltar ao normal, a respiração também, a crise tinha passado. O médico suava e não era do calor, era da tensão. - Está bem, agora? - Sim, confirmou Maria Rita, percebendo que podia falar com um pouco mais de facilidade. O médico disse aos amigos: - Fiquem de olho, estarei ali na água, qualquer coisa corram, me chamem. Todos ainda nervosos se abrigaram debaixo de um guarda-sol, Maria Rita melhorava, o inchaço estava cedendo, os olhos se abrindo, a respiração quase normal, ela apenas se sentia fraca para andar. De repente, sentiu uma dor intensa no abdome, como uma cólica insuportável, de gritar. Tentavam massagear a barriga, nada. Então, Marilia correu, mergulhou, deu com o médico. "Ele devia me achar uma louca", disse ela. "Estava ali olhando os peixes e todas aquelas coisas e eu apareci de repente com gestos desesperados na sua frente. Aí me reconheceu e me acompanhou." Levaram Maria Rita para dentro da água fria. Provavelmente houve um leve choque térmico e a dor começou a esvair. Quando o médico viu que ela estava bem, trouxe um comprimido, mandou que tomasse. "Você já tomou um, em geral, um basta, mas é melhor garantir, tome outro e descanse. Você foi salva por alguns segundos. Segundos, não mais. Fechasse a glote, adeus! E nunca, mas nunca deixe de levar um antialérgico consigo. Aliás, aconselho a todas vocês." Em casa, Maria Rita olhou, havia na sua coxa, rodeando a marca da picada e subindo até quase as costas, um vermelho quase roxo, intenso. Até agora não se sabe o que foi. Escorpião, aranha, inseto, formiga, um bicho de areia, uma cobrinha, dessas milimétricas? O quê? Quando todos voltaram à praia para saber o nome do médico e agradecer melhor, ele e a família tinham voltado ao continente. Aqui em casa, por alguns dias perpassou o terror. Que fazer? Somos assim até o susto passar. Calafrios nos percorriam ao pensar: e se aquele médico não estivesse ali, não houvesse nenhum na praia isolada? Há semanas perdura o mistério. Há acasos, coincidências? Como a vida organiza, dá sentido às coisas? Qual o sentido de certos fatos? Alertar? Quem colocou aquele médico naquele lugar, naquele dia, naquele momento? Mais do que isso: quem é esse médico que salvou minha filha Maria Rita? Tudo o que se sabe é que sua mulher é professora de francês. Escassos elementos para iniciar uma investigação para agradecer. Bispos estúpidos e desumanos, bárbaros e arcaicos, estão a excomungar médicos, mas eles salvam vidas.

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