O menino travesso que amava livros

Aos 93 anos, o bibliófilo José Mindlin lança livro para o público infantil

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Por Daniel Piza
Atualização:

Na lendária biblioteca de sua casa no Brooklin, José Mindlin pede para que apanhem alguns exemplares de livros infantis entre os 45 mil títulos. Em geral, são adaptações de clássicos como Os Três Mosqueteiros, As Aventuras do Barão de Munchausen e Robinson Crusoé - este, na edição que Mindlin tem certeza de que Carlos Drummond leu antes de escrever seu poema sobre o náufrago inglês. A partir de agora, essas estantes que lembram as do professor Higgins no filme My Fair Lady terão mais um título: Reinações de José Mindlin, escritas por ele mesmo (Ática, 48 págs., R$ 23,90). O livro, ilustrado por Luise Weiss, será lançado amanhã, na Livraria da Vila da Alameda Lorena. O título ecoa Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, mas, curiosamente, Mindlin só foi ler o grande autor infantil brasileiro na adolescência, quando já era leitor voraz e colecionador mirim. Já tinha lido muitos livros, inclusive seu clássico infantil favorito, Pinóquio, de Carlo Collodi, e até obras em francês como as da Condessa de Ségur. O que não impediu que a obra de Lobato viesse a impressionar esse jovem freqüentador de sebos. José Mindlin nasceu em 1915; Reinações de Narizinho é de 1931. Mindlin, um advogado e empresário que a todo mundo basta apresentar como bibliófilo, decidiu escrever um livro infantil depois que viu sua neta Ana, de 9 anos, lendo alguns de autores brasileiros recentes. Perguntou-se: ''''Será que não consigo fazer um também?'''' E, ao contrário do que se poderia esperar, não fez um texto sobre suas lembranças de leitor, uma versão para crianças de suas memórias Uma Vida entre Livros. Escreveu sobre as travessuras - as ''''reinações'''' - que cometeu ou testemunhou quando criança. E a mãe de Ana, sua caçula Diana, foi a responsável pelo projeto gráfico do livro. Entre as histórias, está a do muro em que ele e um primo e vizinho, Leonido, abriram um buraco para encurtar a distância até o galinheiro da vizinha, aonde iam apanhar ovos a pedido da mãe de Mindlin. Outra é sobre a boneca russa dada de presente pela famosa bailarina russa Anna Pavlova, em pessoa, e que foi parar no forno de pão dos fundos da casa. Mindlin morava num casarão na Rua Sena Madureira, na Vila Mariana, numa São Paulo bem diferente da atual. Depois foi para a rua Marquês de Paranaguá, em Higienópolis, onde viveria até os 21 anos, mas o livro pára quando ele chega a 10 anos. LAR LITERÁRIO Também se destacam as histórias a respeito de seus pais, judeus russos (nascidos em Odessa, na atual Ucrânia) que se conheceram em Nova York e, por causa de primos que já estavam aqui, optaram por vir ''''fazer a América'''' em São Paulo. Por pouco, então, Mindlin não escreveu sua biografia em Nova York, e os 17 mil livros que acaba de doar para a Universidade de São Paulo - e serão alojados num prédio previsto para ser inaugurado em 2009 - teriam ido para a Morgan Library. O ambiente em que Mindlin cresceu contava com uma governanta russa que ensinou francês aos filhos, primos russos de quem aprenderam russo e a quem ensinaram português, um tio tipógrafo, uma tia que lhe deu o primeiro título de sua coleção ''''brasiliana'''', a História do Brasil do Frei Vicente Salvador, e, em casa, uma biblioteca pequena dos pais, com livros em moda no momento, o almanaque Tico Tico e também - como em tantos lares daquela época - coleções de clássicos russos, franceses e ingleses. Não tardou para que Mindlin se tornasse leitor voraz. Seu irmão mais velho, Henrique, que mais tarde seria arquiteto, também gostava muito de ler e, embora quatro anos mais novo, José lia os mesmos livros. Não era, portanto, um leitor apenas de livros infantis. ''''O grande teste do livro infantil é interessar aos adultos'''', diz Mindlin, que até hoje se entusiasma com Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, e elogia Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Para a mãe, costumava ler Jules Verne. ''''Livros crescem de noite'''', diz o homem que até há pouco tempo lia mais de cem livros por ano. Se contar só que leu dos 13 até agora, devorou mais de 6 mil livros. Há dois anos, porém, já não consegue ler. Seus olhos estão com máculas que não há como operar. Familiares e amigos lêem para ele, mas Mindlin diz que não é a mesma coisa. Tem saudades de passear os olhos pelas letras enfileiradas, no silêncio populoso da leitura, e de manusear o objeto de papel e tinta, razão à qual atribui sua permanência por 550 anos e seu futuro por outros tantos. Do alto de seus 93 anos, completa: ''''Nada substitui o livro.''''

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