O menino que queria ser pianista

O jovem chinês Lang Lang relembra em livro o começo de sua carreira, a saída da China e a relação conturbada com o pai

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Por João Luiz Sampaio
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O pianista chinês Lang Lang está com 26 anos. Ainda assim, já contabiliza mais de duas décadas de carreira - ou, pelo menos, de contato com o instrumento que, nos últimos anos, o tornou em celebridade. Figura freqüente em programas de televisão, tem contrato milionário com o selo Deutsche Grammophon, é patrocinado pela Sony e, pelo posto de garoto-propaganda da Mont Blanc, ganha a comodidade de ter um piano à sua disposição em qualquer hotel que se hospede mundo afora em suas turnês ou viagens como embaixador da Unicef. Mais: em 2008, a tradicional Steinway celebrou o lançamento de uma linha de pianos em sua homenagem. Se no mundo de hoje tudo acontece muito rapidamente, não pode haver melhor exemplo que a carreira de Lang Lang e o fato de que, antes dos 30, ele acaba de publicar suas memórias, Uma Jornada de Mil Milhas: Minha História, depoimento a David Ritz, publicado agora no Brasil pela editora Amarylis (241 págs., R$ 39, tradução de Elaine Alves Trindade). Um dos encantos por trás da figura de Lang Lang é seu jeito de menino inocente; outro é o fascínio pela cultura chinesa, pelo outsider formado em uma tradição muito forte de ensino que, de uma hora para outra, toma de assalto o mundo ocidental, interpretando os clássicos do repertório com virtuosismo fora do comum, sendo logo apadrinhado por grandes como Cristoph Eschenbach e Daniel Barenboim. Mais: ele se tornou símbolo de uma nova China, fiel à sua tradição mas aberta ao mundo, revelando-se potência econômica, política e, por que não, cultural - para se ter uma idéia, segundo levantamento do jornal New York Times, feito em 2007, há 30 milhões de jovens estudando piano na China (10 milhões optaram pelo violino e os números não diminuem à medida que se repassa a lista de demais instrumentos). Todos esses elementos se misturam na biografia. A relação entre Ocidente e Oriente, os métodos de ensino, a transformação da música em negócio, as ligações entre música e política - está tudo ali, mas por meio da mente e das percepções de um menino que, desde muito pequeno, teve o futuro definido pelo pai, músico frustrado, que resolveu fazer dele o "pianista nº 1 do mundo", abandonando o emprego, mandando a esposa trabalhar para sustentar a casa e correndo a China e, depois, o mundo, ao lado de seu menino prodígio. O relato é contundente em sua honestidade. Lang Lang parece não esconder absolutamente nada. Seu pai, entre outras coisas, sugeriu ao filho que se matasse após ser rejeitado por uma professora de Pequim - a morte, afinal, seria melhor do que a vergonha de voltar à Shenyang natal sem ter sido aceito no conservatório. Isso para não falar da limitação de seu contato com a mãe, cujo "carinho" seria um empecilho à formação do caráter determinado de quem deveria tornar-se o pianista número um do mundo. A biografia o acompanha desde a infância até os dias de hoje. Há capítulos dedicados a professores e figuras fundamentais em sua formação; aos anos de fome e dificuldade em Pequim; à adaptação na Filadélfia, onde estudou no Curtis Institute e desenvolveu, na escola, gosto por hip-hop e Britney Spears. Ele fala também longamente sobre os críticos e questiona o argumento de que suas interpretações se têm tornado apenas exibições virtuosísticas, vazias até não poder mais. Lang Lang nega que a grande exposição e a agenda frenética o tenham impedido de se concentrar na pesquisa e no estudo da música que interpreta. E completa: não é justo que o considerem tão auto-indulgente a ponto de fazer da música um meio de exibição de seus talentos. Não há como questionar o talento de Lang Lang - e conhecer sua história nos oferece um senso muito preciso do que foi preciso abrir mão para desenvolvê-lo. Porém, musicalmente - depois dos primeiros álbuns, espantosos - suas leituras do grande repertório têm sido bastante decepcionantes, corretas, mas não mais do que isso. O melhor de Lang Lang, enfim, ainda está por vir. Não é por acaso que os capítulos dedicados aos ensinamentos de seus principais mentores, como Barenboim, sejam os mais pobres do livro - há sim, na carreira e no livro de Lang Lang, uma certa auto-indulgência. O tempo, claro, pode se ocupar disso - que, em meio ao furacão em que viveu seus primeiros anos, ele tenha conseguido manter acesa a paixão pela música, não deixa de ser um começo promissor. Trecho - Quero que pratique uma hora a mais antes da escola e uma hora a mais depois da escola. Quando chegar em casa às 3 horas da tarde, pratique não até as 5, mas até as 6 horas. (...) - Pratique como se não houvesse amanhã - disse ele. - Deve praticar até que todos vejam que não podem rejeitá-lo, que você é o Número 1. Naquele dia, no ensaio do coral, tentei esquecer a professora e o jeito insano de meu pai. A maestrina estendeu o ensaio por mais noventa minutos. Sabia que meu pai ficaria irritado, mas não tive escolha. (...) Depois do ensaio, fui rápido para casa. (...) - Por onde esteve? Está atrasado! Não se pode confiar em você! Você acabou com a sua vida! Você acabou com a vida de todos nós! (...) - Não é minha culpa, a professora pediu que ficássemos até mais tarde para praticar... - Você é um mentiroso, você é preguiçoso! Você é um horror, não tem razão para viver! Você não pode voltar para Shenyang depois dessa vergonha! Todos saberão que você não entrou para o conservatório. Morrer é a única solução. Morrer é melhor que viver na vergonha! Primeiro você morre, depois eu morro! Pegue esses comprimidos! Engula todos os 30 comprimidos imediatamente. Tudo está terminado e você estará morto. (...)

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