O médico e o monstro do pop

Paixão Selvagem devolve a provocação do francês maldito Serge Gainsbourg

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Ele foi o médico e o monstro da cultura pop, a um tempo libertário e misógino. Serge Gainsbourg foi o compositor - e letrista - que deu voz às inquietações femininas e foi gravado por nove entre dez estrelas de cinema que viraram cantoras, de Brigitte Bardot a Jane Birkin, de Mireille Darc a Jeanne Moreau, de Anna Karina à brasileira Vera Fischer. Embora difundisse uma imagem de fauno erótico - e fizesse música para levar cantoras para a cama, como a fama de François Truffaut era a de fazer filmes para dormir com suas atrizes -, Gainsbourg criou canções cujos títulos mais parecem obras de um troglodita, Seja Bonita e Fique de Boca Fechada e As Mulheres nos Fazem Virar ?Pédés? (pederastas). Há exatamente 40 anos, a censura do regime militar proibiu que se tocasse, em todo o território nacional, a música Je t?Aime Moi non Plus, que o próprio Gainsbourg cantava com sua mulher, a atriz e cantora Jane Birkin, cuja letra mais gemida do que propriamente recitada simulava um casal fazendo sexo (e tendo orgasmo). Também, em 1969, insatisfeitas com a proibição da música, que continuava a tocar, clandestinamente, as autoridades cassaram o registro da empresa Philips, que prensara o disco (na era anterior ao CD). Seis anos mais tarde, o filme que o próprio Gainsbourg dirigiu, com Joe Dalessandro e Jane Birkin, entrou na mira do regime militar. As autoridades temiam que o filme, como a canção, incitassem à volúpia ou subvertessem os esteios da moral e dos bons costumes. Escândalos como o de Paixão Selvagem, como se chamou no Brasil, não se produzem mais. O filme está de volta no HSBC Belas Artes, na sessão Cineclube, que este mês reúne um punhado de filmes sob o título geral Na Estrada. A programação exibiu na semana anterior A Estrada da Vida (La Strada), de Federico Fellini, prossegue hoje e amanhã com Paixão Selvagem (Je t?Aime Moi non Plus) e prossegue a partir de sexta-feira com Harry Chegou para Ajudar, de Dominik Moll. Há 33 anos, Paixão Selvagem parecia surgir nas telas como um prolongamento de Último Tango em Paris, o clássico de Bertolucci com Marlon Brando como um viúvo que inicia relação puramente sexual com garota. A personagem de Maria Schneider empresta seu corpo a não importa que experiência, desde que mantenha intocados seus sentimentos. Último Tango foi proibido pela censura e ficou famoso como o filme da ?manteiga?, que Brando usava como lubrificante numa famosa cena de sexo anal. Outros filmes da época também causavam polêmica - e eram proibidos - por causa do sexo. A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick; Decameron, de Pier Paolo Pasolini; Porteiro da Noite, de Liliana Cavani. Acredite - nenhum deles é tão barra-pesada quanto Paixão Proibida. Serge Gainsbourg conseguiu fazer na França um filme de contracultura à norte-americana. Ele já sinalizava para isso ao escolher Joe Dalessandro para o papel de protagonista masculino. Embora Dalessandro nunca tenha se sentido muito confortável e até rejeitasse o rótulo de ?ícone gay?, o galã saradinho estrelava as fantasias sexuais de Andy Warhol e Paul Morissey na Factory. Aqui, ele faz caminhoneiro que percorre uma terra de ninguém com seu parceiro e amante. O caminhão é de lixo e, como diz o próprio Dalessandro, ele conduz os dejetos das cidades, o vômito dos homens. Num posto de beira de estrada ele encontra a garçonete Jane Birkin, tão andrógina que a princípio lhe interessa como se fosse um rapaz. Eles tentam fazer sexo - anal - e são expulsos de todos os hotéis a que vão porque os gemidos de prazer da canção são substituídos por gritos de dor. O sexo termina ocorrendo ao ar livre, na caçamba do caminhão, exatamente onde Dalessandro acumula seu lixo. Ao contrário de Maria Schneider, que suportava a violência mas rejeitava o amor, Johnny - a personagem ambígua de Jane Birkin - submete-se à violência por amor. Isso provoca o ciúme do ?sócio? de Dalessandro, que tenta matá-la. Fotografado por Willy Kurant, Paixão Selvagem pode ser visto hoje como uma espécie de anti-Um Homem, Uma Mulher, rejeitando, por meio de uma estética ?suja? o audiovisual romântico (e publicitário) de Claude Lelouch. É curioso rever hoje em dia, em princípio de carreira, figuras que depois se celebrizaram na França, como os jovens Gérard Depardieu e Michel Blanc. Numa cena, depois de abusar de Jane, Dalessandro lhe explica o que é o amor ?pédé? e, mesmo assim, ela insiste. Em outra, ambos se debruçam sobre um monturo de lixo e ele diz que aquilo é a representação do rio Styx, que, na mitologia grega, faz a ligação dos vivos com a terra dos mortos, o Hades - o rio do inferno, portanto. A garota, impressionada, observa apenas como ele é culto. Paixão Selvagem certamente não é um programa agradável de ver, mas representa bem o estilo de provocação em que Serge Gainsbourg era mestre. A estética maldita do filme talvez seja coisa datada, dos anos 70, mas é toda uma época do cinema - europeu, independente norte-americano ou marginal brasileiro - que volta. As cenas de strip-tease e os ângulos do ato sexual são ultrajantes e reafirmam a misoginia do autor. Gainsbourg dirigiu outros filmes e conheceu outros sucessos de escândalo. Em Charlotte Forever, contou uma história de incesto, contracenando com a própria filha, Charlotte Gainsbourg. Ele morreu em 1991 - em 1980, numa entrevista ao jornal Liberation, previra a própria morte em 1990. Errou por quatro meses, apenas. Serviço Paixão Selvagem (Je t?Aime Moi Non Plus, França/1976, 88 min.) - Drama. Direção de Serge Gainsbourg. 16 anos. HSBC Belas Artes 5 - 19 h

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