O lugar humano do mal

As Benevolentes, de Jonathan Littell, se insere na busca recente por compreender as barbáries

PUBLICIDADE

Por Ricardo Lísias
Atualização:

Imediatamente reconhecido como um acontecimento literário, As Benevolentes (Alfaguara, 912 págs., R$ 79,90), de Jonathan Littell, alcançou um enorme sucesso de público e mobilizou debates críticos que continuam até agora e, pela intensidade, devem continuar por bastante tempo. Antes de tudo, é preciso dizer que de fato o livro é uma jóia literária, exigente e muito bem construída, que merece o lugar de marco, sendo talvez o grande lançamento da prosa de ficção dos últimos dez anos. Para mim, o último impacto de leitura semelhante, falando de autores contemporâneos, foi com Desonra, do sul-africano J.M. Coetzee. Além desses romances, acho que apenas O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon, deteve-me com tanta força. Entre uma e outra aproximação que diversos leitores estão tentando, porém, é importante frisar que o lançamento de As Benevolentes devolve para a língua francesa um espaço no debate literário, agora praticamente dominado pela prosa redigida em inglês. Se considerarmos ainda que a 2ª Guerra Mundial é um assunto pisado e repisado, tendo se tornado desde objeto de filosofia até produto da indústria cultural, passando por alvo de manipulação de todo tipo de interesse político, As Benevolentes, sem fazer concessão a nenhuma dessas matrizes, é realmente um livro que merece aplauso. Estamos diante de um romance de envergadura ímpar. O livro se apresenta como a tentativa de construção memorialística de Maximilien Aue, no momento da redação diretor de uma indústria de tecidos na França, que tentará contar sua história como oficial da SS, uma das mais famosas divisões da organização nazista de Adolf Hitler. Max, como é chamado o tempo inteiro, apesar de desempenhar sempre uma função burocrática, acaba arrastado para todos os lugares de tensão durante o conflito. Dessa forma, esteve no front alemão na União Soviética, que pereceu massacrado pelo frio e pelo exército vermelho em Stalingrado. Visitou também os principais campos de concentração na Alemanha e na Polônia, supervisionou a labiríntica rede de transportes concebida pelo comando nazista e trabalhou muito perto de nomes centrais para o regime. Aqui e ali, o narrador encontra-se com Eichmann, recebe ordens de Himmler e priva da atenção de Albert Speer. O bombardeio que Berlim sofre é descrito com vivacidade em mais de uma centena de páginas e a derrocada do império torna o final do livro eletrizante, quando um improvável encontro com Hitler ocorre em um dos últimos bunkers em pé na capital alemã. Condecorado, no momento em que deverá receber a medalha das mãos do próprio Führer, Max apronta uma travessura inacreditável e o leitor se vê em meio a uma destruição desoladora, rindo sem parar, tal o inusitado da situação. Obviamente não vou revelar o que o oficial Maximilien Aue apronta quando vai receber a medalha de Hitler, mas digo que, não bastasse a precisão narrativa, a inteligência formal e o interesse das outras situações, as 850 páginas anteriores mereceriam a leitura apenas para chegar à cena da condecoração. Entre a narrativa dos tantos acontecimentos militares que o narrador reconstrói, o livro se costura por suas reminiscências familiares, que vão do amor incestuoso à irmã até a morte, em condições um tanto obscuras (mas óbvias), da mãe. Entre um e outro, Max sente profundo asco das cenas de sadismo e violência que testemunha, procura realizar uma discreta obsessão homossexual e demonstra ser um homem, além de perturbado, muito culto. Como não poderia ser diferente no caso do nazismo, a arte toma muitas vezes função simbólica no romance: no final, tentando fugir dos exércitos soviéticos e norte-americanos, que encurralavam Berlim por todos os lados, o narrador carrega no bolso um exemplar da Educação Sentimental, de Gustave Flaubert. Quando saiu na França, logo de imediato As Benevolentes levantou um imenso debate, tendo gerado manifestações de nomes do porte de Claude Lanzmann, o famoso diretor do também monumental documentário Shoa, e Mario Vargas Llosa. Lanzmann parece não ter gostado do livro, acusando-o de caricatural, exagerado e, no limite, muito pouco realista. Vargas Llosa, por sua vez, admite a grandiosidade do texto de Littell, mas coloca um problema estranho: As Benevolentes não seria um ''''grande romance'''' porque não traz o momento de esperança que as grandes manifestações do gênero proporcionariam. Além disso, para Llosa, todas as personagens seriam desprezíveis e não haveria uma página do livro que não seja um momento de degradação. A revista francesa L''''Histoire dedicou quase metade da edição de maio deste ano, quando o livro já ocupava um lugar de destaque no mundo inteiro, a discutir a trama, focando-se sobretudo na verossimilhança das personagens, investigando o que poderia haver de verdade nos carrascos que estão sempre no centro do romance. A conclusão é que o livro não teria, em suas tantas demonstrações de dados históricos, tido um respeito factual pelos acontecimentos, registrando por exemplo como metralhados prisioneiros na verdade assassinados por asfixia. Enfim, antes de tudo é preciso sublinhar que As Benevolentes não é um romance de viés realista, no que aliás estaria francamente ultrapassado. A confusão em que tanto Lanzmann quanto a revista L''''Histoire escorregam deve ser devida ao fato de que o livro oferece ao leitor incontáveis dados estatísticos, descrições geográficas e, inclusive, discute de passagem o que veio a acontecer com as personagens históricas que povoam as páginas, sobretudo Eichmann e Speer. Com relação a esse último, em diversos momentos Littell indiretamente comenta as declarações do pós-guerra, reunidas em livros como Por dentro do III Reich e O Diário Secreto, ambos publicados no Brasil, mas há muito tempo fora de catálogo. A ampla documentação serve no livro, por outro lado, para auxiliar a reconstrução obsessiva do narrador, que precisa reconstituir tudo nos pormenores para colocar-se em algum lugar histórico. E ele o faz, sem nenhum constrangimento e com toda a frieza: seu espaço é o de um homem culto e privilegiado, dentro da máquina de morte nazista, que ele conheceu e ajudou a fazer funcionar, ainda que se horrorizasse muitas vezes com ela. Curiosamente, o debate que se criou ao redor de As Benevolentes deixou passar um detalhe a meu ver fundamental, que inclusive ajudaria a desfazer esses diversos equívocos de leitura: o livro inteiro parece composto a partir de um princípio terapêutico a que o narrador se submete. Dessa forma, os dados históricos, mais do que trazer verossimilhança, fornecem ao narrador uma ilusão de base para suas memórias. Não se pode deixar de lado que o livro compõe um painel de reminiscência, desenhado muito posteriormente por um narrador fraturado. Dessa forma, o lugar terapêutico do exagero e da caricatura fica plenamente justificado e, mais, é necessário para a composição do livro. Como se sabe, a psicanálise é um dos pilares da modernidade, estando na base tanto dos romances do auge da literatura moderna (bastando citar aqui, com mais ou menos aproximação, Marcel Proust, Virgínia Woolf e James Joyce) quanto da principal filosofia do início do século passado, com Theodor Adorno à frente. As Benevolentes se apresenta como um livro inserido nesse grande momento romanesco, mostrando-se como uma espécie de leitura privilegiada tanto de Em Busca do Tempo Perdido quanto do Doutor Fausto de Thomas Mann. Desse último, Littell aproveitou a estrutura da música clássica, agora a revendo em chave irônica: seu livro começa com uma improvável ''''Toccata'''', quando o narrador se apresenta, e passa por um ''''menuet'''' para concluir em ''''Gigue''''. Mas o grande romance moderno, se aparece como estrutura formal, fica em As Benevolentes ao lado de características típicas da pós-modernidade: o pastiche completa algumas peripécias, quando por exemplo o narrador se vê perseguido por dois investigadores da polícia alemã, compostos segundo o modelo do filme policial noir. O final cita, parodiando, o também polêmico filme A Queda! As Últimas Horas de Hitler. As Benevolentes se instaura na tendência contemporânea de se aproximar, através de direções diferentes, do lugar do carrasco na 2ª Guerra Mundial. Tanto a nova historiografia como o cinema, ambos fontes para Littell, voltaram-se ultimamente em um esforço para tentar identificar e discutir a face humana do mal revelada na máquina nazista. É nesse sentido que, por exemplo, aparece a biografia de Hitler redigida por Joachim Fest, também autor de No Bunker de Hitler, um instigante ensaio historiográfico. Já chegaram até nós os livros de Hannah Arendt, de quem Littell parece visivelmente discordar, e também as impressionantes Entrevistas de Nuremberg, coligidas por Leon Goldensohn. Até o Fim, relato de uma das secretárias de Hitler, Traudl Junge, também já foi publicado no Brasil. Enfim, a lista de obras que procuram esmiuçar as tantas faces dos carrascos é enorme e passa também por análises de Joseph Stalin, por exemplo, nos volumes biográficos escritos por Dmitri Volkogonov. Certamente, entre muitos outros, esses textos serviram de fonte para As Benevolentes que, com os privilégios da ficção, reuniu tudo numa espécie de acúmulo nauseante que constitui tanto a própria 2ª Guerra Mundial quanto suas conseqüências. LOUCURA E EXCEÇÃO O monumental romance de Littell coloca-se em um lugar de destaque no esforço de elucidação tanto da personalidade quanto das tantas facetas que os carrascos assumiram em momentos decisivos da história humana. Mais do que uma síntese (que também é), o livro é a principal contribuição ficcional para esse debate. E é aqui, ainda, que vale discutir a crítica de Mario Vargas Llosa. O escritor peruano, sem dúvida, recusa colocar As Benevolentes no mesmo lugar de destaque dos grandes romances da nossa era porque não vê nele um momento de esperança. Além disso, em notável erro de leitura, afirma que todas as personagens do livro são repugnantes. O fato é que nenhuma delas pode ser classificada, no sentido clássico ao menos, como uma típica personagem. Longe disso, são manchas que o narrador, mais ou menos, deixa entrever. Ao contrário do que afirma Llosa, porém, muitas dessas manchas são dignas: a esposa e o cunhado do narrador, por exemplo, ainda que inseridos no cotidiano do horror, reprovam-no e não deixam de ressaltar o lado patológico de toda aquela loucura. Há também, por exemplo, Helène, a garota porquem, a certa altura, Max se enamora. Ela enxerga a insanidade e, mesmo discretamente, reprova tudo. É verdade que o livro procura, no que também é uma tendência contemporânea, investigar o lugar da população comum alemã na tragédia nazista (questão discutida, por exemplo, em Os Carrascos Voluntários de Hitler), mas deixa espaço, sim, para a lucidez e a reprovação ao horror. Mario Vargas Llosa percebe o nervo em que As Benevolentes toca ao citar a famosa frase de George Steiner: ''''As humanidades não humanizam.'''' Aqui, é preciso repetir a pergunta tantas vezes feita durante a 2ª Guerra Mundial: como uma sociedade tão intimamente ligada ao que de melhor a arte pôde conceber conseguiu mergulhar em estado de tão profundo horror? Como já foi observado, Vargas Llosa passa rapidamente por isso, sem dar mais atenção ao problema, o que compromete um pouco sua leitura de As Benevolentes, já que é esse um dos focos principais do livro. Sem dúvida, a atenção que se dá hoje em dia à figura humana do carrasco é uma tentativa de compreender ou, sem respondê-la ou contrariá-la, ao menos se aproximar da afirmação de Steiner. As Benevolentes tem a vantagem de dissolver um lugar-comum bastante difundido hoje em dia: o de que o mal está presente em qualquer ambiente humano, já que as pessoas não seriam nem boas nem más completamente, mas apresentariam as diversas faces da moeda. O livro demonstra, por outro lado, que existe um caráter de opção nas ações humanas: a irmã do narrador, por exemplo, já que não pode efetivamente lutar contra o nazismo de maneira concreta, permanece afastada da máquina de terror. Já Aue se vê importante dentro do mecanismo e faz de tudo para integrar-se nele, até que os limites do corpo o mandem (o que acontece várias vezes) de licença. No fim, parece que tudo está enfeitiçado em um ambiente de loucura e exceção. Mas, voltando, o romance de fato demarca bem o lugar humano do mal, apresentando-o em diversas variantes: a doença mental, a vaidade, a competição, o racismo, a ganância e o desvario político. Vargas Llosa recusa o lugar de As Benevolentes entre A Montanha Mágica e Ulisses, por exemplo, porque o livro de Littell, segundo ele, nos condenaria todos à falta de escapatória, à repugnância e à abjeção. Temo que de novo Llosa se engane e, de fato, As Benevolentes possa figurar ao lado de todos esses grandes romances. Antes de tudo, ainda que fosse verdade a condenação a que o livro nos conduziria, ela não seria motivo para reduzir seu impacto artístico, já que o principal da arte romanesca é, evidentemente, retrabalhar os princípios formais do gênero, a fim de produzir algo novo. No caso, o livro de Littell dá um passo além na tradição do romance, ocupando portanto um lugar de destaque na tradição. Ainda assim é importante destacar o equívoco de Llosa: a fuga da abjeção no romance de Littell se dá justamente na dissolução do clichê que une bem e mal em uma mesma moeda, tornando-os entidades na direção das quais se pode optar. A propósito, quando o narrador diz o contrário, sua própria fala fica neutralizada pela demonstração cabal do fio que o conduz à loucura. Portanto, afirmar que bem e mal são indissociáveis e podem estar no mesmo lugar é um discurso alucinado. Aqui também o livro de Littell se inclui com força no esforço contemporâneo de elucidação da face do carrasco. Como lembrou Adorno no formidável Minima Moralia, mesmo a representação mais insana dos fatos ''''encerra o esforço inconsciente da consciência para conhecer a lei mortal graças à qual a sociedade perpetua sua vida''''. As Benevolentes é o esforço terapêutico do narrador e, ao mesmo tempo, um tour de force para compreender o estado de barbárie que o nazismo causou. Naturalmente, o sucesso do livro leva a uma conclusão simples: as feridas ainda estão abertas. O próprio conflito no Oriente Médio é conseqüência, em grande parte, do horror do Holocausto, aliás muito bem aproveitado para perpetrar demais desgraças. A listagem das inúmeras desumanidades ocorridas pós-Holocausto é longa e demonstra a atualidade da frase de Steiner: Chechênia, Bósnia, Palestina, Timor Leste, Ruanda e Darfur, para citar alguns, independentemente do maior ou menor número de vítimas. Cabe destacar que todos esses genocídios ocorreram (e em Darfur ainda ocorre) aos olhos do mundo, completamente consciente dele. Pois, enfim, ainda sob o impacto da leitura de As Benevolentes, vou tentar também colocar um elemento para o debate aberto por Steiner e incitado pelo livro de Littell: as humanidades não humanizam basicamente porque elas nada têm de especialmente ético a dizer que as coloque em um lugar especial para além das outras manifestações humanas, a ciência ou a política, por exemplo. O que resta, e As Benevolentes coloca isso muito bem, é uma possibilidade de opção, ou também um estado de desajuste que precisa de permanente atenção. Assim, tanto uma pessoa culta como outra ignorante podem optar por agir segundo este ou aquele princípio (e podem, do mesmo jeito, enlouquecer...). Acontece inclusive com as vítimas. Alguns grandes escritores fugiram do nazismo. Outros optaram por aceitá-lo. E poder optar por este ou aquele lado é uma característica humana. O caráter especial da arte está, me parece, em suas possibilidades de rearranjo formal, que pode desdobrar-se tanto em novas possibilidades (e isso é esperança, muito embora Vargas Llosa não tenha visto) como também em um lugar poderoso de denúncia, muitas vezes abstrata e sofisticada. Ora, a grande arte resguarda a sofisticação, mas é preciso esclarecer que ela não tem nada de obrigatoriamente ética ou moral. Trata-se de algo antes de tudo, mas não somente, técnico. O mal, como Littell soube compreender, às vezes é muito bem urdido, profundo e culto. Como estamos mergulhados, hoje, em um estado de profundo desarranjo, quando os horrores nazistas se tornaram ordem do dia, e tudo às claras, o interesse por desvendar o que pode haver de humano e também de monstruoso nos carrascos, é não só justificável como urgente. As Benevolentes é o auge desse processo no campo da ficção, o que o torna um dos principais livros do nosso tempo. Aliás, um dos principais livros de toda a história da literatura.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.