O longo silêncio de J.D. Salinger

Autor do clássico Apanhador no Campo de Centeio completou 90 anos no dia 1.º e há 40 vive recluso

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Por Charles McGrath
Atualização:

No primeiro dia do ano, J.D. Salinger completou 90 anos. Provavelmente não houve comemorações, ou se houve, nunca saberemos. Há mais de 50 anos, Salinger vive recluso na cidadezinha de Cornish, North Hampshire. Por algum tempo, jornais e revistas mantiveram o hábito de enviar repórteres para Cornish na esperança de ver, ou pelo menos obter uma frase de um habitante dado a conversar, mas Salinger não é fotografado há décadas e os vizinhos nunca fizeram o menor comentário. Ele leva uma vida tão fechada, que Thomas Pynchon pareceria um parlapatão em comparação. Na realidade, o desaparecimento de Salinger do cenário mundial foi tão perfeito que talvez seja difícil para os leitores que não são de meia-idade se darem conta da sensação que ele causou no seu tempo. Com a primeira sentença, o romance The Catcher in the Rye (Apanhador no Campo de Centeio) publicado em 1951, introduzia uma voz completamente nova na escritura americana, e rapidamente se tornou um livro cult, um ritual de passagem para os intelectuais e os desiludidos. Nine Stories, publicado dois anos mais tarde, fez de Salinger o escritor favorito da crítica, ao desmontar a tradicional arquitetura do conto, substituindo-a por outra na qual um conto podia acrescentar uma mínima mudança de humor ou de tom. No entanto, na década de 60, no auge da fama, a voz de Salinger se calou. Franny and Zooey, uma coletânea de dois contos longos sobre a família Glass, de ficção, saiu em 1961; outros dois contos longos sobre os Glass, Raise High the Roof Beam, Carpenters (que no Brasil virou Pra Cima com a Viga, Moçada) e Seymour: An Introduction, saíram juntos em um livro em 1963. A última obra impressa de Salinger foi Hapworth 16, 1924, um conto que tomou quase toda a edição de 19 de junho de 1965, do The New Yorker. Na década de 70, ele parou de dar entrevistas, e no final da de 80 recorreu à Suprema Corte para impedir o crítico inglês, Ian Hamilton, de citar suas cartas em uma biografia. Então, o que fez Salinger nos últimos 40 anos? A indagação tornou-se uma verdadeira obsessão para os especialistas neste autor, ainda bastante numerosos, e a seu respeito foram elaborados todos os tipos de teorias. Ele não escreveu mais nenhuma palavra. Ou escreveu o tempo todo e, como Gogol no fim da vida, queimou os manuscritos. Ou então guardou inúmeros volumes que aguardam a publicação póstuma. Joyce Maynard, que viveu com Salinger no início da década de 70, escreveu em um livro de memórias de 1998 que viu prateleiras cheias de cadernos dedicados à família Glass e achava que havia pelo menos dois novos romances trancados em um cofre. Hapworth, que nunca foi publicado na forma de livro, talvez seja a nossa única pista sobre o que Salinger pensa, e é diferente de todo o que ele escreveu. A história só estava disponível em cópias e mais cópias mimeografadas, passadas de mão em mão, e que iam se tornando cada vez mais apagadas a cada nova cópia tirada - embora agora seja um pouco mais acessível, depois da edição do DVD de The Complete New Yorker de 2005. Em 1997, Salinger permitiu que a Orchises Press, uma pequena editora de Alexandria, Virgínia, publicasse uma edição de capa dura, mas cinco anos mais tarde, anulou o acordo. Desde então, os admiradores de Salinger se debruçaram sobre o texto, à procura de um significado oculto. Acaso a temporária disposição do autor de reeditar Hapworth indicaria uma retomada, o aquecimento da máquina que se tornara notoriamente silenciosa? Ou seria um gesto de fechamento definitivo, a conclusão da saga da família Glass - que, ocorrendo no final, mas também no início cronológico, encerra todo o círculo deste empreendimento? Resumindo o que é impossível de resumir, Hapworth é uma carta - ou a transcrição de uma carta - de 25 mil palavras, escritas apressadamente, por Seymour Glass aos 7 anos, em um acampamento de verão, aos pais, os dois sofridos ex-atores de variedades Les e Bessie, e a seus irmãos Walt, Waker e Boo Boo, em Nova York. Ficamos sabendo assim que Seymour já está lendo em várias línguas e deseja ardentemente a sra. Happy, a jovem esposa do dono do acampamento. Ele é condescendente com os colegas do acampamento e dispensa conselhos aos vários membros da família: Les deveria tomar cuidado com o sotaque quando canta, Boo Boo precisa treinar a letra, Walt cuidar de suas maneiras, e assim por diante. A carta se conclui com uma extraordinária lista de livros que Seymour gostaria que lhe enviassem - leituras para toda a vida, para a maioria das pessoas, mas no seu caso, apenas os livros de que ele precisa para passar as seis semanas seguintes: "Qualquer livro, com ou sem comentários, até mesmo sobre Deus ou sobre religião, escrito por pessoas cujo último nome comece por qualquer letra depois do H; para não errar, por favor, incluam também o H, embora ache que já a esgotei na maior parte... As obras completas do Conde Leon Tolstoi.... Charles Dickens, na sua abençoada edição integral ou em qualquer outra forma. Meu Deus, eu te saúdo, Charles Dickens!" E assim por diante, até Proust - em francês, evidentemente - Goethe, e de Porter Smith, Chinese Materia Medica. Em suma, Hapworth deve ser a carta mais longa e a mais pretensiosa (e a menos plausível) que uma criança jamais escreveu em um acampamento. Mas, embora seu autor seja um prodígio, manifesta também, como todas as cartas escritas em um acampamento, o desejo de chamar a atenção de alguém que tem saudades de casa. É o mesmo Seymour que, durante a lua-de-mel na Flórida, anos mais tarde (mas - e a coisa aqui fica um tanto confusa - 17 anos antes, em tempo real, no conto de 1948, A Perfect Day for Bananafish), pegará uma pistola automática do fundo da mala e se matará com um tiro na têmpora enquanto sua esposa dorme na cama ao lado. E o mesmo Seymour - o santo, o poeta, o místico da família - de quem ouvimos falar nos contos posteriores da família Glass. Mas será de fato o mesmo? O Seymour de Bananafish, e Raise High the Roof Beam, é mais um sujeito neurótico, mas doce e encantador, do que a figura etérea, espiritual, descrita em Seymour: An Introduction, que por sua vez não parece absolutamente o pequeno gênio superior, orgulhoso de Hapworth. As discrepâncias entre as várias versões de Seymour são tais que alguns críticos questionaram os motivos e a confiabilidade de Buddy, o irmão mais novo de Seymour e o escriba da família, que é nossa fonte no que se refere à grande parte do que conhecemos (e também o autor da transcrição da carta de Hapworth). Mas esse tipo de leitura complexa, à la Nabokov, é talvez forçada neste caso. Salinger parece menos interessado em manter detalhes precisos do que em corrigi-los e dar uma explicação, ou talvez uma justificativa, naquele momento impressionante, mesmo depois de muitas releituras, quando Seymour se mata. É como se Salinger se desse conta, tardiamente, de que matou seu melhor personagem antes do tempo e quisesse fazer as pazes com ele. TRADUÇÃO DE ANNA MARIA CAPOVILLA

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