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O Japão de Verger nas fotos de principiante

Verger nas fotos do principiante Livro reúne imagens inéditas feitas em 1934 por encomenda de jornal francês

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Quem perdeu a exposição em São Paulo - atualmente na Caixa Cultural de Salvador, até 24 de agosto - tem mais uma oportunidade de ver as fotos inéditas do primeiro trabalho profissional de Pierre Verger (1902-1996), uma viagem ao Japão feita em 1934. Elas foram reunidas no livro O Japão de Pierre Verger (Companhia Editora Nacional, 144 págs., 134 fotos, edição bilíngüe português/japonês, R$ 58), que será lançado nesta quarta, às 19 h, no Instituto Tomie Ohtake. Muito além do interesse historiográfico, trata-se de uma obra que define o olhar de um fotógrafo aberto à cultura do antípoda e cuidadoso o bastante para não a transformar num produto exótico. Verger pertence a uma linhagem de fotógrafos humanistas - como Cartier-Bresson -, capazes de criar empatia imediata com seus modelos. Isso fica claro desde as primeiras fotos que registrou a bordo do navio Tatsuta Maru, afundado durante a guerra por um submarino americano. Crianças japonesas, como se sabe, costumam ser tímidas em contato com estrangeiros, mas os garotos flagrados pela câmera de Verger parecem à vontade, a ponto de um deles mostrar a língua para o francês. Curiosamente, também os passageiros adultos mostram-se confortáveis diante da Rolleiflex de Verger, revelando a feliz interação entre fotógrafo e personagem - isso numa época particularmente difícil para o Japão, mergulhado numa séria crise econômica, provocada, em parte, pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929. Das quase mil fotos produzidas no Japão por Verger, pouco menos de duas dezenas foram publicadas em livros, 11 delas numa obra de Pierre Duhamel, Japon: Entre la Tradition et l''Avenir (Paris, 1953). Outras cinco figuram no livro Cinqüenta Anos de Fotografia, publicado em 1982, em Salvador. Em conjunto com a Fundação Pierre Verger, a Companhia Editora Nacional publica agora, no livro Pierre Verger e o Japão, outras 134 imagens registradas no período de formação do fotógrafo, então um homem de 33 anos sem um projeto definido na cabeça, mas com uma descomunal vocação etnográfica - e cinematográfica, a julgar pela posição dos japoneses fotografados nas suas casas, sempre no nível do tatame, como nos filmes de Yasujiro Ozu (1903-1963). O cineasta japonês, autor de clássicos como Era Uma Vez em Tóquio (Tokyo Monogatari, 1953), é lembrado num texto da professora de literatura japonesa da USP, Madalena Hashimoto Cordaro, que o associa à obra de Verger, apresentando o trabalho do fotógrafo no contexto japonês de 1934, assolado pelo empobrecimento da população e pela abertura ao Ocidente, iniciada na era Meji (1868-1912) e aprofundada durante o governo do imperador Hiroito, diálogo, aliás, rejeitado por grupos ultranacionalistas. As fotos do livro não registram a turbulência política, mas captam seus reflexos. Sensível a esse momento de crise social, o fotógrafo fixa a expressão tensa de pessoas pobres nas ruas de Tóquio e penetra no submundo da cidade em busca de seu lado oculto, o da prostituição, retratada não de forma sensacionalista, mas apenas curiosa. Nas fotos que Verger fez em 1934 no Japão, observa a professora Madalena Hashimoto, não entraram nem o militarismo que marcou profundamente a época nem as manifestações culturais que aproximavam o Japão do Ocidente, como o teatro esquerdista ou a nova literatura de gênios como Kawabata. ''Os signos de 1934, para Verger, se tornaram visíveis através das pessoas: crianças pobres e ricas, jovens mulheres e homens em vestes tradicionais ou ocidentais'', diz a professora, destacando a habilidade do fotógrafo ao percorrer os bairros de consumo luxuoso e os mercados com comerciantes humildes, não esquecendo as zonas de divertimento em que ambos, o homem de negócios e o operário, se encontravam para beber na companhia de garotas ocidentalizadas. Verger tinha pouco mais de dois anos de experiência quando o diretor de um jornal, ao ver fotos suas da Polinésia, convidou-o a acompanhar um jornalista numa viagem ao Oriente e EUA. O livro agora lançado mostra desde as fotos que ele fez a bordo do Tatsuta Maru, registrando passageiros e tripulantes, até imagens de mercados, barcos e marinheiros - temas que marcariam a produção futura do fotógrafo, especialmente ao descobrir, no Brasil, a intensidade da luz e a sensualidade dos trópicos. No Japão, o olhar de Verger não convergia para o aspecto mítico dessa sociedade profundamente marcada pela busca transcendental, como aconteceria mais tarde no Brasil, quando o fotógrafo desembarcou na Bahia, descobriu o candomblé e se interessou pelo culto dos orixás, tornando-se ele mesmo um babalaô - numa temporada africana. Ainda assim o livro traz imagens de templos e parques - apenas registros da arquitetura, sem ambição formal. Elas funcionam quase como um diário da curta temporada que passou no Japão. Lá, Verger viu ainda, segundo ele mesmo, um Japão que tinha guardado suas tradições, o Japão das cerejeiras em flor, dos pagodes, dos templos e das gueixas, mas não o Japão que se deixava contaminar pela loucura dadaísta dos artistas ocidentais e sua literatura surrealista. Não importa. Verger ainda viveria muito para se tornar um etnólogo. Serviço O Japão de Pierre Verger. Organização de Raul Lody. 144 págs. R$ 58. Instituto Tomie Ohtake. Avenida Brigadeiro Faria Lima, 201, Pinheiros, tel. 2245-1900. 4.ª, às 19 h

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